Quarta-feira, 07 de Maio de 2008
Sempre me encontrava com ele. Todos os dias, a caminho da escola, eu passava a ponte arqueada sobre ele, e olhava-o na sua corrente cega, inclinando as ervas altas sem vida. O cheiro nauseabundo passava indiferente aos narizes já tão castigados. As janelas das belas moradias da avenida, outrora abertas ao ar e à frescura do jardim, que se estendia à sua frente, limitado pelo rio, pareciam ter hibernado ou partido para parte incerta. De manhã cedo, já as lavadeiras esfregavam e batiam a longa roupa ao fundo das escadas que davam acesso ao parapeito, que ele, nos dias de Inverno, levado pelas fortes águas das chuvas, galgava facilmente, nas ameaças de cheias. Só nesta altura, o rio parecia ganhar um sopro de vida, para logo ser, novamente, preso nas garras maléficas da poluição industrial. Olhava-o longamente quando atravessava a ponte, como imaginando um rio diferente rodeado, na mesma, das árvores que os rodeavam e que o salvavam do impiedoso sol de verão.
Era um dia de escola, como tantos outros, que deveria estar quase a terminar. Era, talvez, Junho. Eu deveria ter perdido a boleia para a escola, porque me atrasara por qualquer motivo. Era raro, mas acontecia. Então, mesmo atrasada, eu tinha de ir a pé. Foi talvez num desses dias que fiquei ali, especada, olhando o longo caudal do rio, lembrando aquilo que me haviam contado sobre ele – as competições de pesca, os banhos, e outras histórias que ligavam a vida das pessoas à daquele rio. Imaginava-o assim: o rio dos tempos áureos. Os risos das crianças e os gritos ao primeiro contacto com a água fria e ainda limpa do rio. Os viçosos terrenos de cultivo que ele engravidava, no tempo fértil. A água limpa que as lavadeiras outrora haviam amado e que, agora, às escondidas das freguesas, aproveitavam quando estava menos suja. A minha imaginação, estimulada pelos raios de sol que espreitavam por entre a folhagem cerrada da copa das árvores esguias e inclinadas sobre ele, não tinha limites, voava para lá daquela pobre paisagem que se abria aos meus imaginativos olhos encantados. De repente, sobressaltei-me. “Por este andar nunca mais chega à escola. E já deve estar bastante atrasada”, disse a voz, avaliando a minha bata. “Por este andar chega à hora do toque de saída!”, acrescentou. Eu despertei do meu sonho, envergonhada. Perdera, completamente, a noção do tempo e do espaço. O homem, que já deveria estar a observar-me há algum tempo, pareceu ele próprio adivinhar o conteúdo dos meus pensamentos e, contagiado, partiu ele, para longe, rumo às suas memórias. Ele próprio, já com alguma idade, recordava aquele rio, agora morto e mal cheiroso, com vida. As suas lembranças estavam ligadas à pesca à cana com os amigos e aos banhos. Ele olhou-me curioso, tratando-me subitamente por tu. “Tu és muito nova para te lembrares do rio antes desta porcaria em que o tornaram.”, continuou ele triste e ainda curioso. Não, os meus pais não eram dali, expliquei, nada me fazia recordar o rio antes de se tornar esgoto das indústrias. Sim, eu estava a imaginar como seria o rio antes da água estar contaminada. O homem observou-me ainda mais curioso. “É raro, na tua idade, haver preocupações desta natureza. Os garotos da tua idade, na sua maioria, passam por aqui e nem pensam no rio. Acho que se habituaram à poluição.” – observou ele, atentamente, olhando o rio sem vida. Calou-se, amargurado. Eu fitava aquela face enrugada e os olhos cheios de sabedoria, que pareciam capazes de resolver todos os problemas do mundo, admirada com a impotência que ele manifestava. Parecendo ler os meus pensamentos, o homem sorriu e alertou-me, “Agora sou eu quem te está a atrasar. Se correres, ainda aproveitas hora a seguir ao intervalo.” E, piscando-me o olho, seguiu caminho, enquanto eu corria para a escola, imaginando já o sermão da professora, frente às colegas trocistas.

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 06:36
Terça-feira, 06 de Maio de 2008
Os meus filhos mais velhos chegam a casa e, com o pouco à vontade que os caracteriza, na matéria dos afectos, às vezes, lá vão desabafando que fulano ou fulana tal gostam deles. Acho piada ao embaraço que demonstram nestas situações, como se não soubessem como agir convenientemente. A nossa conversa, às vezes, parece ajudá-los. Eu, para ser franca, nunca dei muita importância a este tipo de situações, desdramatizando-as, e colocando-as à luz daquilo que são verdadeiramente – situações naturais da vida. E, como tal, devem ser encaradas não só pelos envolvidos como pelos que os rodeiam. Muitas vezes, a minha resposta à conversa deles era “Mais vale gostarem do que odiarem. Garanto-vos!” E é verdade. Se eu percorrer, de volta, os caminhos das minhas memórias, lembro-me do tabu que era uma situação destas e do modo como garotas mal intencionadas se aproveitavam destas situações naturais, para expor publicamente as outras gaiatas.
Foi no tempo em que os rapazes podiam fazer tudo que nada lhes ficava mal e as raparigas tinham de ser recatadas.
Quando saí da escola primária, nada sabia sobre afectos. O único que eu conhecia era o sentimento de amizade que nutria pelos meus companheiros, vizinhos de brincadeiras. Lembro-me, ainda na escola primária, durante o recreio, de os avistar, ao longe, do outro lado da estreita rua que separava, por sexo, as duas escolas, e acenar-lhes. Era estranha aquela situação. Brincávamos todos, na rua, no amplo espaço verde, por trás das nossas casas e, ali, aquela inexplicável separação forçada. Lembro-me das nossas batas apertadas atrás, todas de um algodão branco imaculado, só diferentes das dos rapazes nos botões que desciam, à frente, do ombro até uns centímetros acima dos joelhos. Como os horários eram semelhantes, muitas vezes, íamos todos, em grupo, para casa. E eram ainda uns quilómetros, sempre a subir, até à zona alta, onde vivíamos no mesmo bairro, adornado de pequenas vivendas, cuja rua estreita, de terra batida, terminava em duas curvas apertadas, virando em direcções opostas. Terminada a última curva, nós estávamos em território nosso. Era, ali, que se desenvolviam as nossas brincadeiras, muitas delas, em conjunto.
Já no ciclo, ainda mais longe de casa do que a primária, foi quando tudo começou. As minhas colegas andavam excitadas e as conversas giravam, muitas delas, em torno do mesmo tema – os rapazes. Eu não via nada de novo nesta matéria e começava a aborrecer-me com as confidências amorosas. Não me diziam nada. Mas era pegar ou largar. Eu tinha de arranjar um afecto, à pressa, para não ficar isolada. Como provavelmente em todos os afectos, há aqueles que são comuns a mais do que uma miúda. Logo, por portas e travessas, as conversas chegavam aos ouvidos dos visados. Vi-me envolvida em intrigas, em desprezos, em ódios… adolescentes. Eu, que não ligava a nada daquilo e só tinha um afecto para não ficar excluída do grupo, via-me envolvida em situações novas e estranhas. Abrira-se, ali, um mundo totalmente novo, que nada tinha a ver com aquele mundo seguro e descontraído, que, até então, conhecera. Este novo mundo, regia-se por leis diferentes, totalmente desconhecidas por mim. Nem irmãs ou irmãos mais velhos eu tinha que pudessem orientar-me, como as minhas vizinhas de casa e de escola tinham. Andava um pouco ao acaso. Mas, como o interesse nesse assunto era relativo, nunca me preocupei. Até começar a ter problemas reais que pareciam perseguir-me. Cheguei a odiar a minha primeira escolha, por toda a situação criada à volta do meu suposto afecto por ele. Recordo-me vagamente do rapazinho gordo, de cara redonda e simpática que se transformara com a vaidade de se saber alvo de um especial afecto por mim. Já não me lembro se lhe escrevi algum daqueles bilhetinhos, tão vulgares na época, escritos em folhas arrancadas dos dossiers, e dobradas não sei quantas vezes, como se quisesse guardar bem o segredo que, depois da entrega, seria divulgada aos sete ventos. Odiei a situação toda, odiei-o… Após esta má experiência, pensei em nunca mais me meter noutra situação semelhante. Mas enganava-me. Um amigo e vizinho ajudou-me a ultrapassar essa situação, que ele próprio reconhecia ser má. O que ele não compreendia, era o meu ódio pelo primeiro alvo dos meus afectos, que, depois da confusão do primeiro ano, admitia que desenvolvera um afecto verdadeiro por mim. Não quis saber. Muito negativamente marcada por todo aquele reboliço, arredei-me um pouco daquela confusão. Como eu e o meu amigo de infância andávamos, muitas vezes, juntos, passei os meus sentimentos para ele. O mesmo inferno se desenhou à minha volta, até me terem avisado que o meu nome estava escrito na madeira velha de um portão mais ou menos nestes termos. "A Fátima do polícia gosta do …" Pois! Já não se pode gostar de alguém sem que se metam na nossa vida! A vida é minha e, se gosto de alguém, o assunto não diz respeito a mais ninguém. Comecei a defender esse direito. Daí a pouco, os meus pais, alertados para a situação, juntaram-se à minha causa, confusos com tanto reboliço em volta de mim. Sei que ganhámos. As pessoas pareceram despertar do seu estado de hibernação moral, para reconhecerem, naquela frase, e em quem a escreveu, não só má vontade como também maldade. O caso mexeu com as pessoas, de tal forma, que se descobriu a autora e o motivo que a levara a escrever aquilo. Não sei se foi ela que apagou a frase, ou se foi o vizinho a quem pertencia o portão alto de estrutura frágil. Foram emocionalmente esgotantes as primeiras andanças na vida afectiva pelo sexo oposto. Ainda bem que os tempos facilitaram a vida, pelo menos, às jovens…


publicado por fatimanascimento às 03:17
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