O sol baila nas folhas das árvores acompanhado da luminosa aragem. Junto ao Forte de S. Clemente, cinco bancos de jardim, apresentando o cinzento do verniz lascado, contemplam o celestial azul puro e diáfano. Apesar da aragem fresca, o sol queima-me a pele com os seus braços ardentes como ferros em brasa. A folhagem verde-escura que veste as árvores, começa a tingir-se de amarelo. Algumas caem chocando violentamente contra a minha figura debruçada sobre um “livro de bolso” que tento ler desde há uns dias para cá, sem grande sucesso. Como é a biografia de uma simpática personalidade da História recente, do século passado, faço um esforço. O cinzento forte adormecido eleva-se à minha frente e esfrega os olhos despertando dos seus longos sonos seculares. Olha-me intrigado. Talvez até aborrecido. Não sei. A minha presença constante parece perturbá-lo profundamente. Os seus olhos faíscam de curiosidade e alguma desconfiança. Talvez até alguma vaidade. Nunca tivera espectadora tão fiel e interessada. A sua curiosidade incomodava-o. Queria regressar à privacidade do seu sono, mas sabia que era difícil! Que se passava consigo?
Tento regressar à leitura. Mas tudo parece conspirar para me distrair. São os turistas que passam de máquina fotográfica espreitando a paisagem sobre o rio no final da tarde. São os habitantes com os quais cruzo meia dúzia de palavras simpáticas. São as crianças correndo livremente à frente dos pais que seguem os seus divertidos e entusiásticos passos. São as conversas em alta voz ao telemóvel…
Subitamente, uma peluda massa negra encaracolada entra no recinto da praça a uma velocidade estonteante. Parece um fugitivo em busca de asilo. Passa pelo banco onde estou sentada e trava bruscamente mais à frente. Dá meia volta e regressa aos meus pés. Olha para mim com uns avaliadores olhos meigos. Salta para o banco e senta-se a meu lado, virando-me as costas. Parece querer encontrar no ar fino um buraco para se esconder. Volta-se resolutamente para mim. Encara-me, por momentos, e olha na direcção do inacessível nobre forte. Estendo o braço e acaricio a sua cabeça molhada atrás das orelhas. Fica quieto apreciando o carinhoso e simpático gesto. Volta o focinho escuro para mim com ar reconhecido. Noto os vestígios de areia no seu focinho. Minúsculas partículas de areia que incendeiam o seu focinho ao ar luminoso. Noto a coleira colorida e percebo que tem dono e que este deve andar à sua procura. Não me enganei! Passados alguns momentos, ouve-se um fino silvo humano. O cão ergueu as orelhas. Reconheceu o som. Procura refúgio no espaço entre o banco e as minhas costas. Demasiado estreito! Parece transtornado. Procura avidamente um local para se esconder numa tentativa desesperada de não ser encontrado. Um vulto desenha-se no ar, fora do recinto da praceta. Chama-o. O cão foge para o banco frente ao meu, procurando refúgio nas pernas de um senhor deformado pelo excesso de peso. Regressa a mim, sem saber o que fazer. O dono aproxima-se e chama-o. Parece convencido a segui-lo. À saída da praceta, numa inesperada decisão, regressa a mim. Não me quer deixar. Quer protecção! Leio na sua atitude o receio. O dono voltou, novamente, para trás.
- Anda! Anda lá, que já não vais mais ao banho! – promete o dono falando, divertido, com ele. O cão não se decide.
- Tu queres, é colo! – observa o dono de brinco na orelha aproximando-se perigosamente de mim e envolvendo o pequeno animal com o braço.
E o pobre lá vai, contrafeito, embalado pelo passo resoluto do homem e olhando desesperadamente para trás como um fugitivo que acaba de ser apanhado! E logo quando está prestes a conseguir atingir o amado exílio que o põe a salvo das mãos torturadoras!
E a tarde cai sobre o recinto exterior à fortaleza. E com ela o sol que fatigado, se prepara para mergulhar no merecido descanso.
Olho em redor. Nada me prende mais àquele espaço. Levanto-me e vou até ao muro de onde se avista a comunhão de rio e mar, numa calma que se espelha nas brasas sulcadas na superfície aquática. Olho a maré que vazou deixando a descoberto o areal ainda molhado. Caminho até à passadeira de madeira gasta, no fim da qual um barco parece estar em apuros mecânicos. Duas mulheres entendidas debruçam-se sobre ele, buscando a causa da insuficiência motora. Depressa chegam a uma conclusão. Sabem como devem proceder. O alívio nota-se-lhes na voz. Subo as escadas do caminho de regresso. A área está limpa. Não se vê ninguém. Viro à esquerda. O sol espera-me para mais uma despedida. Percorro a marginal até ao farol prestes a acordar para mais uma noite de vigília costeira, atirando a sua luz pelo ar escuro da noite até se perder na ignota distância, alheio ao brutal e intermitente esforço produzido. Adormecerá quando o sol se erguer, de novo, pronto para a sua amada tarefa rotineira.
Fátima Nascimento