Adoptámos o cão, dávamos-lhe de comer e... foi o amigo mais fiel que se possa imaginar! Diria mesmo devotado! Acompanhava-nos em todas as brincadeiras malucas que inventávamos. Mais tarde, quando fomos para escola e, depois, para o ciclo, ele acompanhava-nos durante os cerca de 2 km de trajecto, esperava por nós e acompanhava-nos no regresso a casa. Quantas vezes saímos do recinto da escola para o ir defender de miúdos que o agrediam...a ele que adorava miúdos! A imagem dele acompanha-me sempre protegendo-me como sempre fez... foi o único amigo que nunca me defraudou! Quando chegámos à juventude, já não queríamos que ele nos acompanhasse, então, ele virou-se para geração seguinte, acompanhando-a tal como fizera connosco... com a mesma devoção! Quando nos juntávamos, a geração a seguir à nossa fazia questão em nos seguir, e quando nos separávamos, ele percorria a sua indecisão no espaço que separava os dois grupos – o dos mais velhos e o dos mais novos. Quantas vezes ele não se sentiu dividido entre nós e a nova geração? Se nós tivemos sorte nalguma coisa foi, sem dúvida, no espaço que circundava as nossas casas. Do lado da porta da cozinha, para lá dos muros do meu quintal, da ruela em terra batida e semeada de pedras brancas, e de um espaço amplo, coberto de erva que cercava o poço, havia um olival, com algumas figueiras à mistura. Ao lado do prédio onde eu vivia, para lá do carreiro largo, cheio de poças largas e fundas, havia outro olival que acompanhava este carreiro até ao final do mesmo, igualmente salpicado de figueiras de figos pretos e verdes, ao fundo deste, do lado esquerdo, iniciava-se outro carreiro que nós chamávamos “Carreiro das Cobras”, que confinava com as marcas das quintas que ali existiam (e existem!). Este ligava a uma estrada larga de duas faixas, por nós conhecido como auto-estrada, que limitava o olival a oeste. Junto das bermas da “auto-estrada” encontravam-se as bombas da sonap (hoje propriedade da Galp) e o café, que ainda hoje existe, embora modificado. Eram agradáveis os passeios no verão até lá, embora não precisássemos de ir tão longe… Lembro-me com saudade, do mês de Junho e dos santos populares, altura em que os irmãos mais velhos dos meus amigos de infância iam apanhar lenha, rosmaninho,… para fazer a fogueira que acendiam na noite em que se festejava o dia dedicado a cada santo. Como nós ansiávamos por essa ocasião! Lembro-me de saltar de mãos dadas com os meus amigos de infância ( a Dulce, o Fernando e a Alicinha) atravessando as altas labaredas coloridas e perfumadas… sinto ainda a excitação provocada pelo medo e como apertávamos as mãos uns dos outros e como nos lançávamos através da cortina de fogo e da satisfação por termos conseguido ultrapassar aquela barreira! As vozes dos pais gritando conselhos e supervisionando os nossos saltos. Lembro-me da música que nós ouvíamos naquela década de setenta e que ainda hoje ouço e que me trazem recordações adormecidas há muito. Lembro-me da capela do largo de Santo António, cuja capela tinha o mesmo nome, uma das mais belas que eu já conheci, e onde me gostaria ter casado um dia… conheci os cantos àquela capela, mesmo os recantos que outros nunca chegaram, nem chegarão, a ver. A parte frontal do meu prédio ficava virado para o largo e a capela, do lado direito do mesmo, marcava o início do olival… Lembro-me da festas de Santo António, das marchas, da procissão, a chegada e venda das fogaças… Era uma semana durante a qual os cheiros se misturavam com a música e as luzes… Nas traseiras da minha casa, alheados a toda a confusão, os pirilampos passeavam as suas luzes esverdeadas e intermitentes. Cansados do reboliço da festa, refugiávamo-nos naquele mundo feérico, observando e brincando com aqueles seres tão luminosos. Pouco a pouco, esse espaço desapareceu, foram cortando as árvores, construindo moradias e prédios e, hoje, o Bairro de Santo António, quase irreconhecível, bate-se contra o atrofiamento em que o deixaram…