Olho o meu pai com ternura, registando dele tudo aquilo que ele não era outrora... os passos hesitantes, o equilíbrio frágil, o tremor acentuado das mãos, o corpo encolhido e mirrado, rodeado na cintura por um cinto muito apertado à volta de um cós largo, as costas ligeiramente arqueadas, a cabeça coberta por uns cabelos brancos resistentes que lhe encobrem pequenas superfícies de pele luzidia que reflectem a luz solar, a pele enrugada, os olhos meigos, atentos e inteligentes, a voz frágil, calma e hesitante, denunciando as confusões mentais que lhe perturbam o espírito, a audição e o olhar gastos pelo tempo como se nada para ele constituísse uma surpresa já, as atitudes revelando a necessidade de ajuda e de uma outra presença física por perto, o alheamento frequente ao que o rodeia, a memória que o vai traindo, a teimosia infantil, o desprendimento, a reacção lenta, a atrapalhação e o pânico patenteados até nas situações mais simples, o espírito curioso e recto que o faz devorar O Correio da Manhã ainda diariamente, nos momentos lúcidos, a paz que se desprende de todo o seu ser, a sua entrega total, cândida e curiosa às situações desconhecidas que se lhe deparam, tornam-no vulnerável como uma criança num mundo agressivo e violento... dá vontade de o proteger! Olho para trás e lembro-me deste homem outrora e do que ele representava para mim e da importância da presença dele na minha vida... enquanto criança, adolescente e jovem. Enquanto criança, tenho poucas imagens dele gravadas na minha memória, tenho uma em particular, dada a gravidade da situação. Lembro-me de, uma tarde, subirmos lado a lado a ladeira dos canitos e, ao chegarmos ao topo, para fugir ao inusual tráfego intenso dessa hora, atravessámos na curva e tentámos, a custo, lutar contra o fluxo do trânsito que se aproximava, na curva, perigosamente de nós. A dada altura, apareceu uma camioneta que nos ia esmagando contra o alto muro que desenhava a curva. O meu pai, aflito, percebendo o erro que cometêramos, pegou em mim, que ia à sua frente, encostou-me àquela imensa parede áspera e tapou-me com o seu corpo, deixando o espaço necessário como se tentasse, desse modo, afastar aquele longo e pesado veículo de mim. O seu amor por mim nunca mais esteve em causa... O primeiro contraste flagrante é a altura... Lembro-me de um homem alto, de cabelo escuro semeado, desde muito cedo, de cabelos cinzentos, uma face simpática e agradável, independente, inteligente, com uma vida interior intensa e imensa, na qual se refugiava nos momentos de lazer, mesmo quando parecia dormitar, aventureiro, com sentido de humor, de uma rectidão moral vincada herdada do seu pai, e que me foi transmitida nos genes... insatisfeito, ouvinte calmo e atento, orgulhoso, generoso, leal... revoltado com as injustiças próximas e distantes, inimigo da mentira, concentrado no que fazia... uma fonte de força e segurança, uma pessoa com quem me entendia, embora, por vezes, se abrisse diante de nós o fosso da diferença de gerações, apaixonado naquilo que defendia e facilmente irritável quando percebia a resistência a ideias tão simples e fáceis de entender... o homem a quem devo aquilo que sou e como sou, o homem que sempre acreditou em mim e me apoiou, mesmo quando as dúvidas o assaltavam e o levavam a hesitar... protegeu-me sem me sufocar, acompanhou-me sem me apontar o caminho, orientou-me respeitando sempre a minha privacidade e os erros e estimulando-me sem me obrigar a nada... eu herdei muito dele. O amor pela escrita e pela fotografia, (quando encontrei o equilíbrio interior que me levou a escrever!), o que ele, por seu lado, nunca parece ter conseguido, devido, em grande parte, a um casamento conflituoso, e a uma mulher que nunca o entendeu e lhe destruiu grande parte do que realizou devido a preconceitos muito em voga na época e ainda hoje, a medos infundados,... que não deixam as pessoas interpretar inteligentemente aquilo que se lhes depara. Não admira que tivesse desistido...