Sábado, 21 de Julho de 2007
Entrei para a universidade do Porto, após ter feito o 12º ano, para o curso de Arqueologia, que adorei! Do que eu não gostei, foi das perspectivas de emprego que este curso, na altura, oferecia e que eram quase nulas. A disciplina de História sempre me seduzira, embora nem sempre tirasse boas notas, como, aliás, acontecia com o resto das disciplinas. Nem sempre era uma aluna atenta e estudava quase sempre na véspera dos testes. Nunca me distingui como boa aluna, a não ser no ciclo preparatório (actual segundo ciclo) e, depois, a partir do nono ano, onde já se via, ao fundo do túnel, o secundário acenando... de resto sempre fui uma aluna irregular, ora tirava boas notas ora tirava péssimas notas. A minha grande inimizade com a Matemática em nada ajudava... era demasiado distraída para ter boas notas. Ora me esquecia de mudar o sinal quando passava um termo de um membro para outro, ora... havia sempre algo que me fazia sair derrotada na batalha para a conquista da Matemática. Até que desisti... As ciências, embora gostasse de muitos conteúdos, achava outros muito aborrecidos, e as imagens dos livros, desde o a escola primária, serviam para me libertar da prisão das paredes do meu quarto... nada mais.
No secundário optei por letras, devido às minhas duas paixões que eram a História e o Inglês. Como no colégio, a disciplina de alemão era paga à parte, os meus pais recusaram, pelo que a possibilidade de seguir o curso de Germânicas ficou pelo caminho, como espojos de um campo de batalha... Segui para a frente com a História, que fora, desde sempre, outra das minhas grandes paixões e adorava realizar trabalhos de pesquisa, que constituíam para mim um desafio que eu adorava. Era como se tentasse construir um puzzle e tivesse de procurar cada peça para que ele ficasse completo.
No décimo segundo ano, tive de mudar de ambiente... e como nunca fui boa nas adaptações, estranhei bastante a passagem de um ambiente familiar e protector que se vivia no colégio para um liceu, onde a liberdade era total... novas colegas, novos professores... mas só eu parecia ter este problema! O meu percurso académico esteve em risco, quando muitas vezes, já cansada, pensava que trabalhar seria uma alternativa menos complicada. Mas havia algo que me conduzia para o ensino superior. A grande apetência pelas descobertas, pelo saber...
A faculdade do Porto. Estive lá no ano em que o SICAP foi ocupado por alunos encapuzados e tapados com lençóis brancos, foi para mim uma boa experiência, mas o clima e as saudades de casa, quase mataram o meu percurso académico. A ocupação do SICAP... gostaria de falar dela. Eu saíra mais cedo da faculdade e, como estava bom tempo, eu desci a rua do Campo Alegre e dirigi-me ao SICAP para almoçar, ainda não era bem meio-dia. Deixei passar o tempo e entrei... Na sala ampla, ao fundo da qual se encontrava um balcão-vitrina de self-service, com as janelas a iluminá-la do lado direito, quando se entra, dava uma luz suficiente para tonar aquele refeitório um local aprazível para mim. Quando me dispunha a passar para o segundo prato, depois da sopa, entraram alguns alunos universitários, cobertos com túnicas brancas de algodão e um carapuço alto e pontiagudo que servia também de máscara. Pareciam membros da Ku Klux Klan... raio de trajes eles se lembraram de envergar! Alguns colegas negros encontravam-se calmamente a almoçar algumas mesas à minha frente e outros, poucos no total, à minha retaguarda. ! Um dos membros do grupo invasor, trepou para ocupar um lugar de destaque e começou a falar tranquilizando-nos. Explicava a invulgar indumentária por eles escolhida (deviam ser também do tempo da série Os Pequenos Vagabundos!) e a razão pela qual se haviam decidido a ocupar aquele lugar. Resumidamente, explicaram que a branca indumentária se devia ao seu receio de represálias (longe, portanto, de motivos racistas como a indumentária, erradamente, sugerira no início, eram de ordem alimentar, eles queixavam-se da qualidade da comida. A televisão dera-lhes cobertura. Mas, como o SICAP, áquela hora, e ao contrário do que esperavam, se encontrava quase vazio, eles sentaram-se comodamente à espera de mais alunos. Eu, por mim, já vira tudo e resolvi abandonar o local, abrindo passagem pelos jornalistas.
O clima húmido levaram a que eu optasse por outra universidade no fim do ano. O meu pai queria Coimbra. Sempre teve um amor incompreensivelmente muito grande, por aquela cidade. Mas a escolha acabou por recair forçosamente em Lisboa, devido à recusa da minha transferência. Eu não queria voltar para o Porto. Gosto imenso daquela cidade, não me interpretem mal, e tenho muitas saudades, mas o clima acabou decisivamente com os meus problemas de coluna. Parecia que tinha três buracos nas costas, quando saía de casa com aquela chuva miudinha que me encharcava as calças até aos joelhos ignorando o esforço da minha gabardina: um na base do pescoço, outro pouco mais abaixo e ainda outro no meio das costas. Só me passava quando chegava à Rua do Breyner, e me encafuava no dormitório ligando no máximo os três radaiaores a óleo para queimar aquele ar saturado de humidade.
A mudança para Lisboa fez-me bem. Encontrei uma cidade ensolarada e acolhedora. Aí fiz as minhas amizades, que se conservaram para além desse tempo. Éramos três colegas muito unidas, passávamos muito tempo juntas e deambulávamos frequentemente pela Baixa da cidade e, como tinhamos o passe L cidade, também partíamos à descoberta da cidade. Íamos juntas a todo o lado! Depois, à medida que o tempo foi passando, só eu e outra colega, restámos... embora a outra se nos juntasse sempre que podia.
Uma das imagens que fica na memória de qualquer estudante universitário, é, sem dúvida, a sua Bênção das Pastas e o Arraial, que se realizou nos dias anteriores. Aquela teve lugar no espaço livre junto da Torre de Belém, com esta como pano de fundo, onde se celebrou missa, num altar improvisado, que recordava uma cena renascentista. Ficámos ao lado dos estudantes da Força Aérea, alunos da Academia Militar, todos impecavelmente fardados e com uma postura em tudo diferente da nossa, mais descontraída. Lembro-me da nossa alegria quando a nossa universidade foi nomeda... do barulho que fizemos e da surpresa dos nossos colegas vizinhos, cujo barulho m tudo se assemelhou ao nosso, só que o deles foi só na devida altura, como se fossem músicos de orquestra... e do nosso Reitor, num destacado lugar de honra, junto aos das outras universidades, e lembro-me do seu orgulho e emoção ao apresentar os seus finalistas...
O arraial lá acabou por se realizar no castelo de S. Jorge. A noite quente de primavera, era açoitada pelas ondas de multidão que iam e vinham e enchiam aquele lugar sempre tão solitário. Ficámos retidos à porta. Demasiada gente, explicaram-nos. Esperámos pacientemente, protestámos quendo vimos uma onda de estudantes a sair e entrámos. A alegria reinava em todos os cantos... e as bebedeiras! Falámos e conhecemos estudantes que nunca víramos na vida e que nunca mais vimos na vida. Lembro-me de um que me pareceu ter ficado encandeado comigo e me pediu o número de telefone, para sair com a minha colega e amiga... confessou-me ela mais tarde. Ele pedira-lhe o telefone e ela não lho dera. Passaram então a sair juntos. Fiquei com a ideia de que ela me queria proteger de algo. Nunca percebi bem esta situação, por mais que a minha colega ma tentasse explicar... Mais tarde, ele telefonou-me, mas eu já não me lembrava dele! Só mais tarde, eu descobri quem era, conversando com essa tal amiga. Ali, eu conheci o verdadeiro espírito académico, ou aquilo que mais se assemelhava a tal. Para uma grande cidade, a adesão ao arraial, pelos estudantes de todas as universidades, havia sido grande!
Foram dois momentos memoráveis... e os tempos da faculdade foram dos mais felizes da minha vida.


publicado por fatimanascimento às 03:15
Quarta-feira, 04 de Julho de 2007
Na arca das minhas memórias, muitas se vão perdendo no pó do tempo, asfixiando naquele espaço escuro e exíguo que engloba a infância. O meu tio faz parte desse espaço exíguo que, com a passagem dos anos, vê o seu precioso material desfigurado. É por isso que resolvi falar dele, para que a sua imagem escape à voragem das traças temporais...
O meu tio era o irmão mais velho do meu pai e foi uma pessoa importante na minha vida. Conheci-o sempre assim: uma versão mais baixa e mais forte do meu pai. A sua imagem continua viva na minha memória: a pele do seu rosto largo curtida pelas ceifas ardentes do sol alentejano, os pequenos olhos fundos e sorridentes que exalavam uma inteligência fraterna e aberta, protegidos pelas lentes bifocais, a boca de lábios finos sempre prontos a desenharem o seu característico sorriso espontâneo, a cicatriz que adornava o lábio superior, a voz grossa e agradável que o identificava em todo o lado.
Foi o companheiro de brincadeiras do meu pai, apesar dos três anos e meio que os separava. Possuidor de um grande carisma, ele arrastava o meu pai para as brincadeiras, entreajudando-se sempre nas dificuldades. Unia-os uma amizade muito forte.
Desde pequena que me lembro de ter uma verdadeira loucura por ele. A alegria que emanava todo o seu ser, a boa disposição, a sua bondade e a sua naturalidade franca, faziam dele uma pessoa conhecida e amada na vila, onde trabalhou muitos anos.
Eu conhecia o horário em que o carro do lixo da câmara passava a recolher os resíduos domésticos acumulados nos baldes revestidos de plástico ou de jornais desfolhados, colocados aos portões e recolhidos por homens que os despejavam nas gavetas laterais do camião. À noite ou de manhã, ele lá estava, àquela hora e, quando me descuidava com as horas e ouvia o ronco do motor de arranque, anunciando o início da marcha, lá ia eu a correr atrás do camião. Os colegas dele, que recolhiam o lixo, batiam na enorme lata do camião, chamando a sua atenção para a garotinha que corria e o chamava. Lembro-me da alegria dele, quando me viu, e da sua preocupação, olhando-me nos olhos e explicando-me que era perigoso correr assim atrás do camião. Já não era a primeira vez que tal acontecia. Um dia vira-o, em pleno centro da vila, e arrancara a correr na direcção dos seus braços abertos, deixando uma mãe preocupada aos gritos, enquanto o meu pai tentava serená-la, admoestando-a pelo barulho que fazia no seu local de trabalho. Por várias vezes, eu parei para olhar para trás e fitar a preocupação maternal, retomando sempre a marcha sempre em direcção a ele. Lembro-me de ele me apertar nos seus braços fortes, aconchegando-me à sua alegria contagiante.
Lembro-me também que, um dia, os meus avós paternos tinham ido a nossa casa almoçar, por ocasião dos anos do meu pai, julgo eu, e a minha avó levantara-se da mesa, depois de comer, e perguntara quem lavaria aquela merda. Foi o caos. Ninguém sabia o que dizer! Uma tensão de cortar à faca... o meu pai levou os meus avós de volta a casa...e, no regresso, as culpas cairam em cima dele porque não defendera a minha mãe. O caso foi grave... O meu tio ficara de aparecer mais tarde... e assim fez. Quando chegou, o clima pesado quase não deixava respirar. Mesmo a sua alegria parecia incapaz de cortar o véu carregado que pairava sobre as nossas cabeças. Inteirou-se da situação. Depois de se ter sentado à mesa a convite dos meus pais, ele propôs-nos uma saída até à terra onde morava e que ficava ali perto. Depois de qubrar a resistência dos meus pais, lá fomos todos. Foi a solução correcta.
Saímos. O ar quente de Junho queimava-nos a pele desprotegida, embora o sol do fim da tarde enfraquecesse com a hora avançada. O meu tio fez questão em me levar no carro dele. Pelo caminho, ele falava comigo num tom de voz terno, dizendo que eu não me podia deixar afectar pelos problemas dos dois, que eram mais do que habituais.
Nas frequentes visitas que fazíamos aos meus tios e primos, sempre que íamos a casa dos meus avós (e eram bastantes as vezes!), dávamos a volta e passávamos por casa dos meus tios, para os ver. Numa ocasião, lembro-me dele sentado no topo da mesa rectangular, o seu lugar habitual, voltado para a porta da entrada, os seus sete filhos e a mulher sentados à mesa e o ar alegre e feliz que se respirava naquela casa. Toda a gente falava, ria, trocava impressões... ainda hoje os meus primos são unidos. Ele teve esse mérito, juntamente com a minha tia Beatriz.
As pessoas, hoje já com uma certa idade, e que, quando o conheceram eram ainda gaiatos, recordam-no agora com muita saudade. Falam dele com admiração, pela pessoa que ele era e que o fazia entender as pessoas e as situações. Falam hoje ainda do seu carisma... Também eu agradeço a Deus aoportunidade que me deu de conhecer uma pessoa como ele. De todos os desaparecidos, é dele que o meu pai tem mais saudades... apesar de amar toda a família! Eu, por meu lado, as recordações que tenho, e não são muitas, infelizmente, estão mais ligadas à sua maneira de ser alegre e cativante, tão diferente do irmão, mais introvertido e à maneira como o meu pai e ele se entendiam. O meu pai junto dele era outra pessoa!


publicado por fatimanascimento às 10:17
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