Sexta-feira, 12 de Outubro de 2007
-Vamos bater à porta do senhor Patrício para ver se ele tem chupa-chupas?
Era assim que nós, os miúdos, víamos aquela figura carismática. Um senhor simpático, quase sempre alegre e bem disposto que sempre nos fazia uma festa na cabeça, quando nos encontrava. A sua simpatia foi sempre retribuída por nós que, quando o víamos chegar no seu volkswagen branco a gasóleo, largávamos a brincadeira para o ir cumprimentar. A partir de um certo dia, ele passou a trazer-nos rebuçados e, a partir daí, eles eram a desculpa para o incomodarmos nos seguintes.
De figura alta e esguia, o andar ligeiramente desequilibrado devido ao seu problema no joelho, apoiado quase sempre na sua inseparável bengala, sempre elegantemente vestido, de cabeça rapada e luzidia, deixando ver algumas veias de tom azulado, o rosto longo de onde se destacavam uns olhos profundos e inteligentes, de um azul claro electrizante, com uma personalidade forte e enigmática, de uma rectidão traçada à linha, este grande senhor, marcou-me enquanto pessoa.
Meu vizinho, alojado no rés-do-chão esquerdo, frente à porta da entrada da minha casa, desde a minha mais tenra infância, eu cresci à sua sombra como uma flor protegida pela grande árvore. Ele seguiu, de muito perto, o meu crescimento. As nossas conversas, ao entardecer, quando ele chegava a casa, muitas vezes cansado e aborrecido, com os seus problemas que eu adivinhava serem muitos e perturbadores, marcadas pela serenidade e a inteligência das suas observações, ajudaram-me a encarar a vida como eu, ainda hoje, a encaro, com a mesma rectidão e a convicção dele e, sobretudo, sem medo. Este homem, de convicções claras, sempre as defendeu em todo o lado com a mesma paixão e sabedoria que sempre o caracterizaram. De espírito jovem e alegre, a sua paixão pela natureza e o gosto pela jardinagem, faziam do seu jardim um conto de fadas. Lembro-me de, muitas vezes, ele me surpreender a admirá-lo. Entrava sorrateira, não por causa dele, mas das vizinhas sempre atentas ao que se passava à sua volta, e que poderiam interpretar mal a minha presença no seu jardim encantado, e admirava cada flor, a tonalidade da sua cor, e tocava com os meus dedos pequenos e rechonchudos, a leveza e a macieza de cada pétala. Sentia-me protegida, naquele encantado mundo natural, por ele criado. Este seria, mais tarde, trocado pela sua vasta biblioteca da qual ele escolhia algumas obras, para eu ler. Também ali, eu contactei com um mundo, até então, desconhecido para mim. Autores conhecidos, nacionais e internacionais, outros para mim ainda desconhecidos, deram-me uma outra visão do mundo, para mim ainda completamente nova. Entrava também, pela sua mão, num mundo encantado – o das letras. Fui das poucas pessoas a quem ele abriu as portas da sua casa. Movimentava-me nela como na minha própria casa. Cada ideia, encerrada dentro de cada livro, era debatida por nós até à exaustão ou até onde o tempo nos permitia. Profundamente culto, inteligente e viajado, ele falava com conhecimento de causa sobre toda a matéria abordada. E não havia tabus nas nossas conversas. Adorava conversar com ele. O mundo, ao pé dele, parecia seguro, deslumbrante e um desafio maravilhoso. Ele sempre me incitou a pisar sem medo o chão, acreditou em mim, antes de eu própria o fazer, e quando os meus pais me aconselhavam cautela, ele sempre acreditou e me incitou a andar para a frente, o que me levava a crer que ele me conhecia melhor do que eu própria ou os meus próprios pais, naquela altura. Ainda hoje, a sua imagem é um exemplo na minha vida, por vezes conturbada. Foi, é e será sempre uma figura marcante na minha vida. Foi meu amigo, meu vizinho, meu mentor… foi um segundo pai, para mim. Foi um exemplo para todos nós que tivemos o privilégio de o conhecer e privar com ele. Foi um homem que deixou, pelo seu exemplo de vida, uma presença inextinguível na vida de quem o conheceu bem. Bem haja, por isso!
É com o pensamento nublado pelas lágrimas da saudade que eu o recordarei… para sempre!


publicado por fatimanascimento às 16:32
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