A janela do meu quarto ficava virada a oeste, e recolhia os oblíquos raios doirados do sol que se prepara para uma noite de sono repousado. As vidraças, cobertas por uns cortinados finos, presos por esticadores, pregados na moldura de madeira branca, lascada pelo tempo, filtravam a claridade e os atrevidos raios solares, desenhando estranhas e acinzentadas formas dançantes na enorme parede branca, cortada em cima por uma pequena prateleira de onde espreitavam sonolentas bonecas de cabelo ralo. Por baixo dela, o divã, ao qual haviam sido acrescentadas as partes da cabeceira e os pés da cama de uma vizinha minha de infância, cujo pai, mestre na arte da carpintaria, construíra nova mobília para o quarto dela, a minha mãe teve a ideia de as acrescentar ao meu pobre divã, dando-lhe, deste modo, um ar de cama. As cobertas feias de floreados davam um ar alegre e vistoso ao conjunto. Do lado oposto, outra parede imensa, junto da qual estava uma réplica do meu divã. Do lado oposto à janela, três malas de viagens sobrepostas, cobertas com um pano vistoso, tinham a pretensão de serem uma arca imensa. Ao lado delas, e aos pés da minha cama, a imensa arca preta cravejada de pioneses cinzentos metalizados alinhados, ornando a arca alta que meu pai trouxera consigo, quando saiu de Macau. Revestida, no interior, por um macio e fino tecido azul, as minúsculas gavetas, captavam toda a minha atenção e interesse. Era a arca dos segredos orientais, encerrando nela todo um mundo silencioso, atractivo e desconhecido.Mas era a janela que mais me fascinava, de sentinela permanente ao mundo exterior, eu via dali o mundo aclarar e anoitecer. Conhecia, de cor, os efeitos alaranjados dos ainda mornos raios solares, na parede e, através dela, chegava também todo o ruído do mundo exterior, que eu captava e seguia atentamente do exíguo espaço do meu quarto, onde me encontrava prisioneira. Era junto dela, que cada ano, eu perscrutava o céu ansiando pela chegada do Pai Natal, viajando alegremente no seu trenó, pelos céus escuros e frios, mas cheio de promissoras estrelas. Não esperava as prendas, mas a figura alegre, afável e atenciosa dessa figura, guardando uma esperança viva no fundo do meu coração, que ele tivesse um lugar lá na sua aldeia distante e fria, algures perdida no mapa, onde os seres humanos não tinham possibilidade de ir. Aquela aldeia cheia de cor, luzes, sons alegres, onde todos os habitantes se davam bem e onde a vida corria normalmente, sendo orientada unicamente pelo sol. Uma aldeia onde todos os habitantes eram felizes... Mas o Pai Natal não veio.Mais tarde, já em plena adolescência, era da minha janela aberta, nas noites amenas e luminosas de verão, que eu seguia atentamente qualquer movimento invulgar naquele céu parado e monótono, procurando qualquer manifestação de vida exterior ao planeta, sonhando com uma cumplicidade e uma amizade, enfim, um segredo que mudaria a minha vida e lhe desse o sentido que eu parecia ter perdido!Era através dessa janela estreita e alta, que eu olhava o espaço imenso coberto por um figueiral que ocupava o comprimento de todo o bairro e o sombrio olival que se estendia até à estrada larga, de dois sentidos, à esquerda do meu prédio, atravessando o estreito carreiro de terra batida, coberto de poças de água que a chuva teimosamente escavava. Era este mesmo olival que se transformava em bosque encantado nos dias de sol, quando os fortes raios trespassavam a neblina e a imensa folhagem verde-cinza e aterravam alegre e delicadamente, acariciando as belas, coloridas e delicadas flores primaveris, que se destacavam da tenra erva. Era nesse mesmo olival, nesses dias luminosos de Primavera, de oliveiras baixas, de ramos largos, fortes e baixos, que eu me refugiava, na companhia das bonecas, e imaginava o meu lar e o das bonecas. Passava horas ali…
Era através dela também que eu via, no fundo do carreiro, junto da curva, abrindo-se de forma corajosa, lutando contra a poderosa natureza que teimava invadi-lo, o sombrio "carreiro da cobras", onde nós, os miúdos, enfrentávamos inúmeros perigos, nas nossas aventuras imaginárias. Era aquele o meu cenário, o meu mundo familiar e também o meu mundo secreto...
Fátima Nascimento
Era através dela também que eu via, no fundo do carreiro, junto da curva, abrindo-se de forma corajosa, lutando contra a poderosa natureza que teimava invadi-lo, o sombrio "carreiro da cobras", onde nós, os miúdos, enfrentávamos inúmeros perigos, nas nossas aventuras imaginárias. Era aquele o meu cenário, o meu mundo familiar e também o meu mundo secreto...
Fátima Nascimento