Domingo, 25 de Maio de 2008
Era um edifício pequeno e acolhedor. À entrada, o largo portão azul, no cimo da íngreme ladeira, abria os braços às bocas esbaforidas e ao rosto vermelho do esforço da subida. O impiedoso sol estival esgrimia os seus raios na direcção dos audaciosos aventureiros que ousavam importuná-lo àquela hora da tarde. O espaçoso pátio empedrado, de estreitos canteiros rectangulares, evidenciava os seus pequenos arbustos frondosos e coloridos que ladeavam a passagem de acesso ao edifício. O interior, submerso na fresca obscuridade das cortinas corridas, desprendia um silêncio acolhedor só interrompido pelas tímidas vozes sussurrantes ou pelo ruído dos passos abafados, espelhados na cera polida dos tacos largos. O agradável cheiro a cera fresca inundava a sala disputando a sua supremacia ao das folhas amareladas e finas dos livros muito manuseados.
A senhora da recepção, debruçada sobre os papéis da secretária, levantou a cabeça à minha chegada. Os óculos de lentes pequenas, equilibrados na ponta do nariz, agravavam o ar austero, que o seu olhar seco projectava em mim. A boca de lábios finos, abriram-se para pronunciarem um breve “Sim?!”. Depositei os livros em cima da mesa, que me haviam feito companhia nos últimos quinze dias e que haviam percorrido todo o caminho aconchegados ao meu peito suado. Entrei na sala. Duas ou três cabeças espalhadas pela sala de leitura, de olhos cravados nos livros, nem deram pela minha chegada. Dirigi-me aos armários, de estantes irrepreensivelmente limpas, guiada pelas instruções prévias da senhora. Olhei os armários cujos vidros, protegidos por uma espécie de rede metalizada, guardavam fielmente o seu tesouro. A madeira das portas, ligeiramente inchada pelas humidades dos Invernos mais rigorosos, dificultava a tarefa da sua abertura. Os livros, de tamanhos e grossuras variados, perfilados nas estantes, jaziam adormecidos, totalmente alheios ao ar morno destilado da brisa que atravessava as cortinas fechadas, sacudindo-as mansamente. O ruído da porta a desprender-se do seu encaixe, fez levantar as cabeças, antes absortas, dos vários cantos da sala de leitura. A senhora da recepção acudiu solicitamente, alarmada com o ruído. Depois de uma breve inspecção, e vendo que nada fora danificado, ela explicou que aquela porta necessitava da intervenção urgente de um carpinteiro que demorava em vir. Muito vermelha por ser o centro inesperado das atenções da sala, e de coração ainda a bater apressadamente, apressei-me a acenar em sinal de concordância. Uma vez sozinha, frente àquela porta inoportuna, procurei rapidamente os livros que necessitava e a mesa do canto mais distante e discreto. Tarde demais. Um puxão na minha camisola de manga curta de algodão, fez-me parar. Ao lado, sentado a uma das mesas centrais, estava um amigo meu, um ano mais velho, filho de um colega do meu pai. Trocámos algumas palavras, olhando, de vez em quando, para a entrada e à volta, para nos certificarmos que não estávamos a incomodar os presentes. Ninguém pareceu dar pela nossa conversa, a não ser um rapaz que, de vez em quando, e parecendo ter dificuldades em se concentrar, nos olhava sem rancores visíveis. Segui o meu caminho, rumo ao recanto descoberto minutos anos, e mergulhei no refúgio imaginário de uma das minhas autoras favoritas. O tempo voou. Uns toques ligeiros no meu ombro, e um sorriso afável, avisaram-me que tinha chegado hora. Olhei à volta e reparei que todos se levantavam e arrumavam as cadeiras, junto das mesas imperceptivelmente. Levantei-me, acompanhada dos livros que queria requisitar e dirigi-me à recepção, sempre seguida do meu inesperado acompanhante. Acabados os trâmites necessários, saímos para a tarde morna daquele fim de dia de verão, falando e rindo abertamente.

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 09:50
Segunda-feira, 19 de Maio de 2008
Lembro-me delas. Ambas grandes, grossas e pesadas. Estavam encostadas a um canto da sala, ao lado dos mapas por onde estudávamos a geografia do nosso país e das ex –colónias. Sempre fui uma aluna sonhadora e, como tal, muito distraída, o que me valeu alguns sustos, com a cana da índia que, muitas vezes, aterrava violentamente sobre a minha cabeça, fazendo esvoaçar os meus assustados cabelos, mas só me lembro de ter apanhado uma vez, duas reguadas.
Não, nunca fui uma boa aluna. Tanto tinha notas muito boas, médias como notas más, no meu percurso escolar acidentado. Era demasiado distraída para estar atenta o tempo suficiente para compreender a matéria, a não ser quando esta estimulava a minha imaginação, aí, eu lia, a matéria imensas vezes, o que compensava as horas escolares perdidas. Nas minhas provas, naquele rectângulo que nós dobrávamos, do lado esquerdo do papel grosso, de linhas a perder de vista, a minha professora escrevia, numa caligrafia rabiscada, quase invariavelmente, a mesma queixa de sempre - “Podia ser melhor, mas é muito distraída!”
Éramos imensas alunas. As mais altas ocupavam as carteiras do fundo da sala. Eu estava ao meio mais a minha eterna companheira de carteira, a Manuela, de imensos cabelos loiros e olhos castanhos. Era tão despistada como eu!
Um dia a professora dissera que iríamos fazer um ditado daquela lição que acabáramos de ler tão mal. O trabalho de casa consistia em ler o texto para nos prepararmos para o ditado e quem tivesse mais de dois erros levaria o número equivalente de reguadas. A leitura e a ortografia foram sempre o meu forte. Passava horas a ler os textos dos meus livros de leitura, alguns dos quais, alguns poemas, cheguei mesmo a decorar. No dia seguinte, o ditado foi feito e corrigido na aula. Tive um erro. A maioria das colegas tivera mais, o que desesperou a professora. Mais um ditado agendado para o dia seguinte do mesmo texto. Eu pensei que já estudara tudo, pelo que não teria de trabalhar mais aquele texto. Com o que eu não contara fora com o meu pânico. Fiquei confusa com a ortografia de uma palavra que ressalvei, errei, ressalvei… numa hesitação e confusão como jamais me acontecera. Um erro, eu sabia que tinha, mas o outro… desesperava por encontrar a solução certa. Qual delas seria? A minha desesperada intuição, ajudada pela toldada memória visual, indicava-me uma delas… O que me tinha acontecido? Teriam sido as ameaças da professora, no início da aula, mais terríveis que as da véspera? Quando chegou a minha vez, lá estavam os dois erros marcados. Duas reguadas estavam certas. Meti-me na fila e esperei pacientemente a minha vez. Quando ela chegou, ainda me tentei defender, com o ditado da véspera, onde tinha tido só um erro. Toquei ainda na palavra que aparecia bem escrita várias vezes e falei-lhe da confusão. A professora, que tomara tudo quanto eu dissera em consideração, parecia querer voltar atrás. Mas as colegas, acumuladas lá no fundo da sala, defenderam que ontem era ontem e que eu tinha de levar como as outras. Levei uma reguada em cada mão. Esfreguei as mãos ainda dormentes da batida. Sentei-me, humilhada com a injustiça e a falta de solidariedade das colegas soerguidas nas carteiras, apontando violentamente na minha direcção, como carrascos sedentos de sangue.

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 06:51
Domingo, 11 de Maio de 2008
(À minha mãe, Dulce de Jesus do Nascimento Dias, o meu agradecimento pelos maravilhosos momentos que passámos enquanto me contava esta e outras histórias da sua infância e que fazem parte do imaginário popular….)

***

Era uma escura e fria tarde de Primavera. O céu cerrado de nuvens pesadas, ameaçava chuva, não fosse a temperatura baixa. Enrolada no seu xaile de lã, a senhora seguia o esguio trilho, tantas vezes percorrido. Nessa noite, um frio invulgar parecia tomar conta dela. Aconchegou-se mais no seu xaile e ajeitou o lenço na cabeça. Apressou o passo, para fugir a uma possível tempestade que assumia contornos ameaçadores. Olhou o céu, fechado, escuro e indiferente. Estremeceu., sentindo-se subitamente só. “Que parvoíce!”, pensou, “Já fiz este caminha tantas vezes! Para o que me havia de dar!” De súbito, um ruído de arbustos rasteiros afastados, fê-la rodar sobre si. Não viu ninguém. Esperou um pouco. Nada. Prosseguiu caminho, calculando que já faltaria pouco para chegar. O mesmo ruído de vegetação afastada. Ela voltou-se subitamente, tentando surpreender o que quer que fosse ou quem quer que fosse. Ainda nada. Voltou a retomar a marcha, desta vez, com o coração a bater descompassadamente. Que raio seria aquilo? O que quer que fosse estava a segui-la. Parava ao mesmo tempo para logo retomar a marcha também em simultâneo. A senhora olhou em volta desesperada. O que quer que fosse não se deixava ver com facilidade. Parecia pesado e ágil e…invisível. A senhora, ainda nova, respirou fundo e tentou recompor-se. Puxou a cesta, pendurada no braço esquerdo, mais para junto do cotovelo. Os novelos, aninhados uns contra os outros, pareciam crias adormecidas. A visão deles teve um efeito calmante na mulher. Olhou de novo em redor, para se certificar que não havia nada por perto, e retomou a marcha. O passo apressado parecia fazer eco uns metros atrás. A mulher encheu-se de coragem e parou a marcha resolutamente. Não voltaria a sair dali sem descobrir o estranho mistério. Deu uns passos atrás, olhando cuidadosamente à sua volta. As poucas árvores pareciam petrificadas, enquanto que a vegetação rasteira se calava num silêncio cúmplice. Nada à vista. Estranho. Depois de se certificar que não havia ninguém escondido, ela olhou para o chão à procura do autor daqueles passos furtivos. Foi então que deu com eles, meio encobertos pela vegetação rasteira. Um par de olhos rasteiros olhava-a atentamente, numa tensão que mostrava um sentido de alerta apurado, precedido de uma bocarra enorme aberta que mostrava uma fila de dentes alta e esguia. Pelo tamanho da cabeça, a senhora calculou o tamanho do corpo. Era um bicho enorme, como nunca, até então, tinha avistado. Instintivamente, ela recuou uns passos. O animal deu uns passos em frente também. Agora, ela tinha a oportunidade de o ver na sua verdadeira dimensão. Por momentos, mulher e animal fitaram-se como que medindo forças. Foi então que lhe surgiu a ideia. Olhou para a boca do animal e para o cesto onde repousavam mansos e indiferentes os novelos. Retomou a marcha sempre com animal na sua peugada. Lenta e atentamente, foi deitando os novelos atrás de si, servindo de barreira improvisada entre ela e o animal. O animal não se atrapalhou e foi-os engolindo um a um. Foi assim que chegaram à entrada do povo. A mulher ao avistar uns homens a trabalhar, desviou-se na direcção deles, sempre com os olhos fitos no animal. Chegados ao pé dos homens, a mulher gritou por ajuda. Eles correram solícitos armados com os utensílios do trabalho do campo. Ao depararem com o animal estático, a boca cheia de novelos, não conseguiram dissimular um sorriso. A mulher, de mão no peito, deixou cair a cesta, praticamente vazia, e agarrou-se ao muro de pedra. O animal encarou os homens que apontavam os utensílios à sua cabeça, deu uns passos em frente e… foi o seu fim.
O seu corpo embalsamado pode ser visitado na igreja de Nossa Senhora da Lapa.

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 02:58
Sábado, 10 de Maio de 2008
Finalmente. Vejo-a tão poucas vezes, agora, que o seu aparecimento é um grande acontecimento. Veio ligeira, feliz, realizada, cheia de projectos e novidades, e fotos da sua vida actual... e com a solidariedade que a caracteriza. Não demorou muito tempo, mas veio. Deixou o quarto onde vivia e trocou-o pela sua privacidade, encontrada num na forma de um T1, nas águas furtadas de um prédio do centro da grande cidade. Mostrou as fotos da casa - muito espaço, imensa luz. A decoração já está desenhada na sua imaginação. A principal preocupação - torná-lo confortável. E vai consegui-lo.Tudo surgiu muito depressa na sua vida - o fim do curso, o estágio e o emprego. A independência traduzida num quarto alugado, pago pelos pais, na baixa da cidade. O estágio não era remunerado. Mesmo no final do período de estágio, a desistência de uma colega, que optou pelo melhor salário oferecido pela concorrência do ramo, a vaga aberta, o ambicionado emprego e uma carreira que começa a desenhar-se apoiada numa ambição justa e num desafio de dar o seu melhor naquilo que faz. É uma rapariga destes tempos, como tantas outras. Com interesses idênticos e sonhos.Curiosamente, não foi a idade que nos aproximou, mas as viagens diárias que fazíamos na direcção da capital, naqueles comboios longos, incansáveis que se fartavam de engolir e vomitar gente, em estações e apeadeiros. Ainda me lembro desse dia. Apanhámos o inter-regional, e ficámos sentadas num compartimento, com os dois bancos presos às paredes opostas. As bagagens num suporte, por cima das nossas cabeças. Ficámos à frente uma da outra. Ao lado dela, uma senhora de idade relembrava as circunstâncias dolorosas em que perdera o marido, quando trabalhava na linha do comboio e fora colhido bruscamente por um comboio, e lhe roubara a vida demasiado cedo. Olhávamo-nos ocasionalmente, numa cumplicidade intensa. Ela não suportava mais ouvir aquela senhora que revivia incessantemente aqueles momentos de há vinte anos atrás, e que nunca mais ultrapassara. Ainda me lembro do seu rosto distorcido, numa careta improvisada e cautelosa, que não demorava mais do que um instante. Apontou-nos o local. Não se lembrava já muito bem. Era mais à frente ou mais atrás, mas era aquele sítio. Impressionadas com as lembranças e o profundo sofrimento daquela alma que nunca mais reencontrara a paz, fingimos interessar-nos pelo local. Quando a senhora saiu, pudemos, finalmente, falar à vontade. Simpatizámos uma com a outra e trocámos os contactos. Como vivíamos na mesma localidade, não era difícil encontrarmo-nos.
Foi uma amizade que duraria até aos dias de hoje. Somos diferentes, não só na diferença de idade como no temperamento, como na maneira de pensar, mas isso nunca foi impedimento para uma boa, forte e longa amizade. Mesmo a distância, o silêncio prolongado, a que nos vemos sujeitas, devido às circunstâncias da vida, o sentimento está lá.

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 02:56
Sexta-feira, 09 de Maio de 2008
A manhã acordou pacata e risonha. A estreita rua, de antigos prédios altos, abria os braços aos desinquietos e mornos raios. Saí para o sol aconchegante, deixando-me envolver pela pacífica luz. Não se via ninguém na rua. Fui até ao Largo da Maternidade, para descer sempre, até à Rua do Campo Alegre. Como a manhã se apresentava esplêndida, resolvi ir a pé até à faculdade. Era o primeiro dia de aulas, o dia da temível praxe. Instintivamente, já esperava que os alunos mais velhos tivessem preparado algumas brincadeiras. Estava preparada para elas e, sobretudo, para fugir a brincadeiras que, muitas vezes, ultrapassavam os limites.
À entrada do portão, só o velho palacete azul me dava as boas-vindas entre acolhedor e malicioso. Olhei espantada para o edifício. Não poderia ser esta a faculdade! Onde estava o edifício novo de construção moderna de que me haviam falado? À minha volta o jardim, meio abandonado, de árvores altas e frondosas, filtravam os raios solares, cada vez mais fortes. Contornei o edifício. Atrás dele, desenhava-se o novo pavilhão de linhas direitas. Dirigi-me cautelosamente a ele, com os sentidos alerta. Numa das portas, onde desembocava o portão mais acima, havia uma fila de jovens, que eu adivinhava serem caloiros, retidos à entrada, como um rebanho à espera de passar o portão estreito. A minha intuição desviou-me daquela entrada. Escolhi uma outra que estava livre. Mais descansada, dirigi-me a ela, quando reparei que dois alunos bloqueavam a entrada. O que fazer? Se eu hesitasse ou fizesse algum gesto revelando insegurança, estaria descoberta. Não, pensei para mim, eu era uma aluna antiga já. Os dois jovens preparavam-se para me bloquear o caminho, quando ficaram aturdidos com a minha descontracção. “Com licença! Bom dia!” disse eu sem parar. Continuei a andar. Os passos confusos deles seguiram-me, enquanto os ouvia murmurar. “Caloira?”, perguntava um. “Hum, não sei… Vamos ver!, respondia o outro, enquanto me viam a consultar o horário, para ver em que sala ia ter aulas. Eu olhava atentamente as portas das salas. A mesma sala tinha duas portas, uma delas marcadas no alto, com o respectivo número doirado, enquanto a outra estava marcada desajeitadamente a giz branco. A minha sala ficava no rés-do-chão. Entrei, sem a mínima hesitação, e esperei na sala vazia, onde apenas o sol alagava a sala, subindo pelas paredes. Das largas janelas opostas à porta, o jardim cantava ao som daqueles raios outonais. O vento brando acariciava e balançava docemente algumas flores resistentes e os ramos das árvores. Do lado oposto, as vozes confusas mas resolutas. “Não, não era caloira!”, acordaram entre elas. Sorri. Estava segura.
Daí a pouco, vozes dispersas começaram a dispersar-se pelos corredores. Acabara a praxe. Alguns rostos surgiram à porta. Não era ali a sala de aula, embora o horário defendesse o contrário. Iriam informar-se melhor. A aula mudara de sala. Acompanhei os meus colegas a uma sala mais ao fundo.
“É tua colega?”, perguntou um dos meus antigos perseguidores. À resposta afirmativa do meu colega de turma, eles mostraram-se inconformados por terem sido enganados. “Escapou-se desta!”, foi a resposta. Interrogando os meus colegas, percebi que a praxe até tinha sido divertida. Só uns riscos, umas pinturas com batom, uns teatros improvisados, … nada mais. A opinião geral era que eles até tinham sido simpáticos.

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 02:05
Quarta-feira, 07 de Maio de 2008
Sempre me encontrava com ele. Todos os dias, a caminho da escola, eu passava a ponte arqueada sobre ele, e olhava-o na sua corrente cega, inclinando as ervas altas sem vida. O cheiro nauseabundo passava indiferente aos narizes já tão castigados. As janelas das belas moradias da avenida, outrora abertas ao ar e à frescura do jardim, que se estendia à sua frente, limitado pelo rio, pareciam ter hibernado ou partido para parte incerta. De manhã cedo, já as lavadeiras esfregavam e batiam a longa roupa ao fundo das escadas que davam acesso ao parapeito, que ele, nos dias de Inverno, levado pelas fortes águas das chuvas, galgava facilmente, nas ameaças de cheias. Só nesta altura, o rio parecia ganhar um sopro de vida, para logo ser, novamente, preso nas garras maléficas da poluição industrial. Olhava-o longamente quando atravessava a ponte, como imaginando um rio diferente rodeado, na mesma, das árvores que os rodeavam e que o salvavam do impiedoso sol de verão.
Era um dia de escola, como tantos outros, que deveria estar quase a terminar. Era, talvez, Junho. Eu deveria ter perdido a boleia para a escola, porque me atrasara por qualquer motivo. Era raro, mas acontecia. Então, mesmo atrasada, eu tinha de ir a pé. Foi talvez num desses dias que fiquei ali, especada, olhando o longo caudal do rio, lembrando aquilo que me haviam contado sobre ele – as competições de pesca, os banhos, e outras histórias que ligavam a vida das pessoas à daquele rio. Imaginava-o assim: o rio dos tempos áureos. Os risos das crianças e os gritos ao primeiro contacto com a água fria e ainda limpa do rio. Os viçosos terrenos de cultivo que ele engravidava, no tempo fértil. A água limpa que as lavadeiras outrora haviam amado e que, agora, às escondidas das freguesas, aproveitavam quando estava menos suja. A minha imaginação, estimulada pelos raios de sol que espreitavam por entre a folhagem cerrada da copa das árvores esguias e inclinadas sobre ele, não tinha limites, voava para lá daquela pobre paisagem que se abria aos meus imaginativos olhos encantados. De repente, sobressaltei-me. “Por este andar nunca mais chega à escola. E já deve estar bastante atrasada”, disse a voz, avaliando a minha bata. “Por este andar chega à hora do toque de saída!”, acrescentou. Eu despertei do meu sonho, envergonhada. Perdera, completamente, a noção do tempo e do espaço. O homem, que já deveria estar a observar-me há algum tempo, pareceu ele próprio adivinhar o conteúdo dos meus pensamentos e, contagiado, partiu ele, para longe, rumo às suas memórias. Ele próprio, já com alguma idade, recordava aquele rio, agora morto e mal cheiroso, com vida. As suas lembranças estavam ligadas à pesca à cana com os amigos e aos banhos. Ele olhou-me curioso, tratando-me subitamente por tu. “Tu és muito nova para te lembrares do rio antes desta porcaria em que o tornaram.”, continuou ele triste e ainda curioso. Não, os meus pais não eram dali, expliquei, nada me fazia recordar o rio antes de se tornar esgoto das indústrias. Sim, eu estava a imaginar como seria o rio antes da água estar contaminada. O homem observou-me ainda mais curioso. “É raro, na tua idade, haver preocupações desta natureza. Os garotos da tua idade, na sua maioria, passam por aqui e nem pensam no rio. Acho que se habituaram à poluição.” – observou ele, atentamente, olhando o rio sem vida. Calou-se, amargurado. Eu fitava aquela face enrugada e os olhos cheios de sabedoria, que pareciam capazes de resolver todos os problemas do mundo, admirada com a impotência que ele manifestava. Parecendo ler os meus pensamentos, o homem sorriu e alertou-me, “Agora sou eu quem te está a atrasar. Se correres, ainda aproveitas hora a seguir ao intervalo.” E, piscando-me o olho, seguiu caminho, enquanto eu corria para a escola, imaginando já o sermão da professora, frente às colegas trocistas.

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 06:36
Terça-feira, 06 de Maio de 2008
Os meus filhos mais velhos chegam a casa e, com o pouco à vontade que os caracteriza, na matéria dos afectos, às vezes, lá vão desabafando que fulano ou fulana tal gostam deles. Acho piada ao embaraço que demonstram nestas situações, como se não soubessem como agir convenientemente. A nossa conversa, às vezes, parece ajudá-los. Eu, para ser franca, nunca dei muita importância a este tipo de situações, desdramatizando-as, e colocando-as à luz daquilo que são verdadeiramente – situações naturais da vida. E, como tal, devem ser encaradas não só pelos envolvidos como pelos que os rodeiam. Muitas vezes, a minha resposta à conversa deles era “Mais vale gostarem do que odiarem. Garanto-vos!” E é verdade. Se eu percorrer, de volta, os caminhos das minhas memórias, lembro-me do tabu que era uma situação destas e do modo como garotas mal intencionadas se aproveitavam destas situações naturais, para expor publicamente as outras gaiatas.
Foi no tempo em que os rapazes podiam fazer tudo que nada lhes ficava mal e as raparigas tinham de ser recatadas.
Quando saí da escola primária, nada sabia sobre afectos. O único que eu conhecia era o sentimento de amizade que nutria pelos meus companheiros, vizinhos de brincadeiras. Lembro-me, ainda na escola primária, durante o recreio, de os avistar, ao longe, do outro lado da estreita rua que separava, por sexo, as duas escolas, e acenar-lhes. Era estranha aquela situação. Brincávamos todos, na rua, no amplo espaço verde, por trás das nossas casas e, ali, aquela inexplicável separação forçada. Lembro-me das nossas batas apertadas atrás, todas de um algodão branco imaculado, só diferentes das dos rapazes nos botões que desciam, à frente, do ombro até uns centímetros acima dos joelhos. Como os horários eram semelhantes, muitas vezes, íamos todos, em grupo, para casa. E eram ainda uns quilómetros, sempre a subir, até à zona alta, onde vivíamos no mesmo bairro, adornado de pequenas vivendas, cuja rua estreita, de terra batida, terminava em duas curvas apertadas, virando em direcções opostas. Terminada a última curva, nós estávamos em território nosso. Era, ali, que se desenvolviam as nossas brincadeiras, muitas delas, em conjunto.
Já no ciclo, ainda mais longe de casa do que a primária, foi quando tudo começou. As minhas colegas andavam excitadas e as conversas giravam, muitas delas, em torno do mesmo tema – os rapazes. Eu não via nada de novo nesta matéria e começava a aborrecer-me com as confidências amorosas. Não me diziam nada. Mas era pegar ou largar. Eu tinha de arranjar um afecto, à pressa, para não ficar isolada. Como provavelmente em todos os afectos, há aqueles que são comuns a mais do que uma miúda. Logo, por portas e travessas, as conversas chegavam aos ouvidos dos visados. Vi-me envolvida em intrigas, em desprezos, em ódios… adolescentes. Eu, que não ligava a nada daquilo e só tinha um afecto para não ficar excluída do grupo, via-me envolvida em situações novas e estranhas. Abrira-se, ali, um mundo totalmente novo, que nada tinha a ver com aquele mundo seguro e descontraído, que, até então, conhecera. Este novo mundo, regia-se por leis diferentes, totalmente desconhecidas por mim. Nem irmãs ou irmãos mais velhos eu tinha que pudessem orientar-me, como as minhas vizinhas de casa e de escola tinham. Andava um pouco ao acaso. Mas, como o interesse nesse assunto era relativo, nunca me preocupei. Até começar a ter problemas reais que pareciam perseguir-me. Cheguei a odiar a minha primeira escolha, por toda a situação criada à volta do meu suposto afecto por ele. Recordo-me vagamente do rapazinho gordo, de cara redonda e simpática que se transformara com a vaidade de se saber alvo de um especial afecto por mim. Já não me lembro se lhe escrevi algum daqueles bilhetinhos, tão vulgares na época, escritos em folhas arrancadas dos dossiers, e dobradas não sei quantas vezes, como se quisesse guardar bem o segredo que, depois da entrega, seria divulgada aos sete ventos. Odiei a situação toda, odiei-o… Após esta má experiência, pensei em nunca mais me meter noutra situação semelhante. Mas enganava-me. Um amigo e vizinho ajudou-me a ultrapassar essa situação, que ele próprio reconhecia ser má. O que ele não compreendia, era o meu ódio pelo primeiro alvo dos meus afectos, que, depois da confusão do primeiro ano, admitia que desenvolvera um afecto verdadeiro por mim. Não quis saber. Muito negativamente marcada por todo aquele reboliço, arredei-me um pouco daquela confusão. Como eu e o meu amigo de infância andávamos, muitas vezes, juntos, passei os meus sentimentos para ele. O mesmo inferno se desenhou à minha volta, até me terem avisado que o meu nome estava escrito na madeira velha de um portão mais ou menos nestes termos. "A Fátima do polícia gosta do …" Pois! Já não se pode gostar de alguém sem que se metam na nossa vida! A vida é minha e, se gosto de alguém, o assunto não diz respeito a mais ninguém. Comecei a defender esse direito. Daí a pouco, os meus pais, alertados para a situação, juntaram-se à minha causa, confusos com tanto reboliço em volta de mim. Sei que ganhámos. As pessoas pareceram despertar do seu estado de hibernação moral, para reconhecerem, naquela frase, e em quem a escreveu, não só má vontade como também maldade. O caso mexeu com as pessoas, de tal forma, que se descobriu a autora e o motivo que a levara a escrever aquilo. Não sei se foi ela que apagou a frase, ou se foi o vizinho a quem pertencia o portão alto de estrutura frágil. Foram emocionalmente esgotantes as primeiras andanças na vida afectiva pelo sexo oposto. Ainda bem que os tempos facilitaram a vida, pelo menos, às jovens…


publicado por fatimanascimento às 03:17
Segunda-feira, 05 de Maio de 2008
(Ao meu pai, Francisco Dias…)

Estava de serviço numa das noites que se seguiram ao 25 de Abril. Torres Novas era uma pequena vila, com um quartel aninhado na extremidade da parte baixa da localidade, ocupando uma boa área dela. Todos nos lembramos daqueles dias de insegurança que se seguiram ao rebentamento da revolução. Todos nós tínhamos medo. Afastados do fulcro dos acontecimentos, ninguém sabia bem quem estava à frente do país e o que pretendia. Os dias eram de inquietação e as noites de medo. Ninguém se atrevia a sair à noite. O meu pai, agente da PSP, tinha de sair para fazer a sua patrulha. Naqueles tempos, os polícias eram poucos e faziam a patrulha a pé e sozinhos. Foi o que aconteceu naquela noite ainda fria de Abril. Ele estava sozinho na rua. Ele entrou à meia-noite. Como sempre acontecia, ele chegou mais cedo e, após a troca de algumas palavras com os colegas sobre os acontecimentos do dia, ele saiu calmamente para sua ronda. Desceu a estreita e curta rua, que saía da praça 5 de outubro, seguiu sempre em frente, respirando o ar ainda frio da noite. Passados momentos, ele ouviu tiros vindos do lado do quartel. Os colegas tinham razão, a agitação vinha daquele lado. Os tiros repetiram-se a uma velocidade atroz. O meu pai estremeceu. Que raio se passaria ali? A vila, sempre calma, não era dada a problemas. Só poderia ser alguém ligado ao quartel. Parou e pôs-se à escuta. O barulho parecia ter desaparecido. Talvez já tivesse passado. Continuou a caminhar, sempre atento a qualquer movimento ou ruído suspeitos. De repente, os tiros prolongaram-se rasgando a noite. Uma metralhadora, pensou. Parou, atento, o coração a bater descompassadamente. Precisava urgentemente de localizar os tiros. Os tiros pareciam rodeá-lo. Olhou para a sua pistola. Nunca se servira dela. Passou a mão pelo coldre, onde estava a arma enfiada. Lentamente, retirou-a, sempre à escuta. A rajada parecia vir do seu lado esquerdo. Pelos disparos, parecia ser uma só arma. Uma metralhadora., pensou, Quem andaria por ali acompanhado de uma metralhadora? Só poderia ser um militar. Onde teria arranjado a metralhadora? Com que ordem a teria trazido para fora do quartel? Todas estas questões assaltavam-lhe o espírito ansioso. Enfiou a arma de novo no coldre e continuou a andar, regulando-se pelo ruído que, de tempos a tempos, rasgava o ar. Não havia sinal de grande movimentação, pelo que deveria ser só um militar a celebrar a revolução. Continuou a sua ronda. Os tiros estavam agora mais perto. Estacou, novamente. "Malditos militares", pensou com raiva. Os tiros ecoavam pela baixa da vila. As janelas fechadas pareciam desertas. Caminhou corajosamente em frente, receoso do que poderia encontrar pela frente. Antes de chegar ao cemitério, cortou à sua esquerda, na ponte rústica que passava despercebida a grande parte das pessoas, direito ao Félix Carreira e continuou atraído pelo ruído. Que se passa?, pensava ele curioso e cauteloso. Continuou sempre em frente, contornou a Casa de Saúde até à ponte do Raro. Era do lado do quartel. Olhou à sua volta e nada viu. Que raio, pensou, As rajadas calaram-se. Quando se preparava para passar a ponte, uma voz autoritária fez-se ouvir. “Alto!”, e reconhecendo a farda da PSP, continuou “Dê-me a arma ou limpo-lhe o sebo!” O meu pai voltou-se lentamente, encarou o homem, e a metralhadora apontada ao seu peito. “Há algo de errado no homem”, pensou o meu pai. O outro de farda militar fez um gesto de impaciência com a metralhadora. “Bom”, pensou o meu pai, “Agora, ele limpa-me mesmo o sebo”. Retirou lentamente a arma do coldre, sem tirar os olhos do homem, baixou-se e atirou-a para longe dos seus pés. O outro, um pouco bêbado, pareceu agradar-lhe sentir-se obedecido. Parecia saborear o seu acto. Foi esse momento que, obedecendo ao seu instinto, ele desatou a correr, aproveitando a obscuridade da rua. As botas pesadas da tropa seguiram no seu encalço, arfando debaixo do peso da metralhadora e do álcool que consumira. O meu pai, aproveitando a vantagem, cortou numa das travessas em direcção ao posto da PSP. Bateu à porta que permaneceu fechada. Insistiu. O ruído seco das botas da tropa aproximava-se rapidamente. O meu pai contornou a relojoaria e subiu na direcção do castelo. Passou en frente à GNR e bateu à porta em busca de abrigo. Olhou a porta verde cerrada. Guiadas pelo ruído das pancadas, as botas orientaram-se na sua direcção. Desesperado, o meu pai desceu a colina do castelo em direcção à avenida. As botas seguiam-no, atentas ao mínimo ruído. Aproveitando a obscuridade o meu pai evitou a ponte e mergulhou na poluição do rio Almonda, nadando bruços num silêncio que só ele consegue. Chegado à margem, olhou para trás e viu a figura alta a olhar em seu redor, confusa com o seu súbito desaparecimento. Manteve-se agachado, até ver a farda afastar-se, sempre acompanhado da sua fiel arma, olhando sempre em redor, cautelosamente, à espera de um deslize do perseguido. “Um autêntico militar em situação de combate”, pensou o meu pai, avaliando-o. Após um certo tempo, o meu pai saiu do seu esconderijo e correu apressadamente em sentido contrário ao do militar, direito a casa.
Naquela noite, a minha mãe acordou sobressaltada com as rajadas de metralhadora. De pé, os pés descalços em cima do bidé, ela seguia atentamente os ruídos de arma de fogo, pensando, angustiada, no marido, na rua, enfrentando sozinho as balas que cortavam profundamente a noite.
05:00 horas da madrugada. Foi o cheiro que me despertou nessa noite. O meu pai despiu a roupa nauseabunda, tomou duche enquanto a minha mãe se dirigia apressadamente ao tanque com ela. O cheiro era insuportável e manteve-se dentro de casa ainda uns dias, para nosso desgosto.
06:00 horas. O meu pai vestiu-se novamente e preparou-se para sair. Sossegou a minha mãe dizendo que iria para o posto e que não poderia ficar em casa, sabendo que o colega estava sozinho do posto. Ele sabia o perigo que ele corria e era preciso avisá-lo. Nós não tínhamos telefone. Foi então que a campainha tocou. Entreolhámo-nos. Quem seria àquela hora? O meu pai foi abrir a porta. Entraram os colegas. “Graças a Deus! Estás aqui!”- foi a exclamação geral. O alerta fora dado pouco depois da perseguição ao meu pai. A GNR e o colega do meu pai que estava de plantão, telefonaram para o quartel, relatando o acontecimento, e pedindo-lhe ajuda. O colega do meu pai informou-os que o meu pai andava sozinho na rua, e que poderia apanhá-lo pela frente. Os militares entraram em acção, dispersaram-se numa busca ao homem, quando encontraram a pistola do meu pai no chão. O posto foi prontamente avisado do achado. A ordem é que se mantivessem quietos até os militares apanharem o colega. O que não levou muito tempo. Levaram-no para o quartel. Sabendo da captura do militar e ainda alarmado pelas pancadas na porta, o colega de plantão no posto da polícia chamou alguns colegas e deram uma volta pela vila em busca do meu pai. Não havia vestígios dele. Finalmente, ganharam coragem, meteram-se dentro do carro de um deles e vieram a casa procurá-lo.
10.00 horas da manhã. Os militares entregaram-lhe a arma, com um pedido de desculpas, explicando à PSP, e ao meu pai, o que sucedera. Os militares que conheciam o autor de tal desacato, disseram ao meu pai, que a sorte e o perigo dele estivera na bebedeira do militar que o havia perseguido. A sorte porque a bebida toldara-lhe o espírito e o perigo porque ele poderia, a qualquer momento, ter disparado a arma, matando-o. Era um bom militar, muito bem treinado, mas o meu pai conhecia melhor a localidade que ele. Os militares estavam chocados com o que sucedera, mas visivelmente mais chocados com o que poderia ter acontecido.


publicado por fatimanascimento às 02:53
Domingo, 04 de Maio de 2008
(Esta foi uma lenda contada pela minha mãe e que parece ter acontecido em Gradiz, a sua terra natal, há muitos, muitos séculos atrás...)
A aldeia ficava no fundo das colinas, cobertas de penedos gigantes e escuros que circundavam o pequeno aglomerado de casas. A suas formas arredondadas deviam-se à água que escorria, desde sempre, por eles, numa camada fina, quase imperceptível ao olho humano. Nos dias de sol, essa torrente fina de água reflectia o sol de uma forma intensa que se propagava por todo o vale. Era por essas colinas que os lobos, nos longos dias de frio intenso, em que a água que cobria os penedos se transformava em gelo brilhante e transparente, desciam à procura do alimento que escasseava nessa época do ano. Os camponeses, privados das suas lides habituais, pela branca extensão de neve que se perdia de vista, viam os animais rondarem as portas e os currais dos animais inquietos com a presença dos indesejáveis predadores, afastavam-nos defendendo-se com os instrumentos manuais da faina agrícola, arrumados nas frágeis arrecadações. Como a aldeia ficava enterrada no meio das colinas que, por sua vez, estavam escondidos pelos bosques quase impenetráveis de frondosas árvores, e, afastada de todos os caminhos principais, por onde se deslocavam, habitualmente, pessoas, dir-se-ia que a única preocupação daquele pequeno e desalinhado aglomerado de casas, era a privacidade. Raramente apareciam desconhecidos por aquelas paragens, pelo que os habitantes viviam calmamente os seus dias, não tendo outra preocupação que a sua sobrevivência.
Num dia de intenso sol, os poucos habitantes foram surpreendidos por um exército enorme que se perdera por aquelas paragens, enquanto trabalhavam as suas terras. Interpelados por aqueles homens vestidos de armaduras e sentados em cima de enormes cavalos, os habitantes ficaram petrificados, limitando-se a olhar uns para os outros, sem saber como reagir naquela situação. O comandante daquele exército já se começava a impacientar com a atitude dos camponeses e começara a levantar a voz como se o problema daquelas pessoas fosse a surdez, quando um imediato lhe chamou a atenção para as colinas reluzentes que os sitiavam. A luz intermitente confundia-os. Rodaram os cavalos e os restantes soldados daquele exército, à semelhança dos seus comandantes, olharam também em volta, mostrando um certo nervosismo. O que se passava naquelas colinas? Que reflexos eram aqueles? Dir-se-ia que um exército escondido esperava o momento certo para abandonar o seu esconderijo, cercá-los e derrotá-los sem dó nem piedade. Confusos com o que viam, o exército, atemorizado, recuava prudentemente, enquanto avaliavam rapidamente a sua situação. À frente, do lado esquerdo e do direito o panorama aprofundava mais os seus temores. Só a retaguarda estava livre, com a ampla floresta testemunha do inglório beco onde se haviam metido. Os reflexos eram, estavam certos, homens cujas armaduras e armas refulgiam ao sol. Eram tantos que não havia esconderijo para todos. Depois, o sol parecia estar do lado deles, uma vez que quase os ofuscava com os seus raios reflectidos um pouco por todo o lado. A intensidade era tal que quase os cegava. Um momento de indecisão trespassou a alma dos comandantes, que se entreolharam cúmplices, procurando descortinar nos seus olhos os pensamentos uns dos outros. Havia unanimidade na decisão. A batalha deles não era aquela. Seguiriam o seu caminho e levariam o exército intacto ao seu destino. Ali, também não teriam qualquer hipótese, uma vez que se encontravam cercados e o exército, parecia coeso, imenso e bem armado. E estavam melhor posicionados. Não arriscariam. Fizeram sinal às tropas, deram meia volta e seguiram o seu caminho, sem ligarem à estupefacção dos aldeãos, que, agora, estavam ainda mais confusos, sem fazerem a mínima ideia do que se passara. As pobres criaturas só se conseguiram mexer, quando a última fila do inesperado exército desapareceu na curva do carreiro que os recolocaria no bom caminho. Foi então que se voltaram e depararam com o espectáculo que os maravilhou e compreenderam tudo. Os fiéis rochedos, com a sua água reflectindo os raios solares de forma intensa, davam a impressão de que estavam protegidos por um exército. Entreolharam-se surpreendidos. Fora aquele espectáculo que afugentara aquele enorme exército. Suspiraram de alívio e continuaram o seu trabalho amanho da terra. Quer de Inverno que de verão, aqueles rochedos, desde que o sol forte lhes batesse violentamente, o espectáculo manter-se-ia sempre, pelo que não se tinham de preocupar com possíveis ataques inimigos.


publicado por fatimanascimento às 03:54
Sábado, 03 de Maio de 2008
eregrinação do país – a igreja de Nossa Senhora da Lapa. Esta história vai ser contada pelas minhas palavras, ajudada pela minha memória.
(À minha mãe, pelas histórias que me contava oralmente, quando tinha paciência, e que povoaram parte da minha imaginação…)

Gradiz era uma aldeia pequena, que, com o tempo cresceu, sendo elevada a freguesia, há algum tempo atrás. Ao lado, há uma localidade irmã, a Lapa, da qual esteve separada durante muitos anos, pelos cabeços naturais e, para as populações se deslocarem, tinham de andar muitos quilómetros apanhando a estrada nacional ou atravessar os mesmos. Há alguns anos atrás, a tão desejada estrada foi aberta, ligando, definitivamente, as duas populações. Pertence a esta última a história que vou contar. Esta história, com o tempo, foi-se espalhando, tornando esta localidade mais um dos destinos de peregrinação

O frio era cortante, mas a menina parecia nem parecia senti-lo. Protegida pelo lenço áspero na cabeça, as camisolas de lã sobrepostas, no cimo das quais repousava o xaile escuro, as pernas protegidas pelos saiotes e a saia, juntamente com as meias e as botas, a pequena trabalhava cuidadosamente. No alto da lisa colina rochosa, olhou distraidamente o rebanho que, mansamente, pastava à sua frente, para lá da fogueira, que crepitava alegremente. Tudo em ordem. Em redor, não se via ninguém. Raramente se via alguém, por aquelas bandas. Só alguns caçadores se aventuravam naquelas paragens, com aquele tempo. Voltou a mergulhar a cabeça na sua querida tarefa. Tão concentrada estava, que não deu pelos passos que se aproximavam apressados. Sobressaltou-se com a voz dura e aguda que cortava os tímpanos. Saltou do grosso ramo, que lhe servia de assento, e olhou o rosto vermelho de ar frio, distorcido pela raiva.
- Com que então é assim que passas o teu tempo? – perguntou-lhe a recém chegada, no mesmo tom azedo.
A rapariguinha olhou para o chão, envergonhada. O seu coração batia apressadamente. A mulher olhou para uma das mãos da garota de onde pendia um comprido rolo de trapos coloridos. Dirigiu-se à pequena e arrancou-lhe os trapos das mãos. Olhou para eles atentamente. Os trapos artisticamente ligados uns aos outros. Calculou o tempo que terá levado a fazer. E repetiu furiosamente, virando-se para a filha:
- É assim que passas o teu tempo?
A menina, de olhos baixos, estava petrificada. E, pela primeira vez, parecia tremer, como se fosse, finalmente, o frio se apoderasse dela.
- Quer dizer que em vez de trabalhares, estás a perder tempo com estas porcarias? – tornou na mãe. - Eu já te mostro o que vou fazer com isto. – ameaçou a mãe, dirigindo-se à fogueira.
A menina, adivinhando as intenções da mãe, gritou:
-Tate, mãe. É Nossa Senhora de Lapa! – gritou a menina, aflita.
A mãe retirou às chamas a boneca que ficara com uma mancha escura numa das faces da boneca.
A mãe, ainda confusa, tentou limpar, se sucesso, o sinal deixado pelo lume. Olhou para a filha sem compreender, quando, alarmada, notou que a filha tinha numa das faces, uma réplica exacta daquela que a boneca exibia. Perplexa, a mãe começou a olhar à sua volta notando situações para as quais não tinha explicação: o gado pastava sempre no mesmo sítio e andava gordo, na fogueira ardiam chamas altas, quando nela não havia mais do que brasas e, agora, a cara da filha, para além da voz da filha que ouvia pela primeira vez.


publicado por fatimanascimento às 04:42
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