As noites claras de Junho desciam serenamente sobre a terra cansada e dorida do sol escaldante, proporcionando-lhe as tréguas merecidas.
A música, saída dos altifalantes, lembrava-nos que a festa estava a começar. Daí a pouco, uns punhos fechados, batiam forte e apressadamente contra o vidro da porta da cozinha. Após o jantar, lá ia o nosso bando ao encontro daquele chamamento.
No corredor, que dava para os quintais do meu prédio, éramos presenteadas com aparecimento dos pirilampos esvoaçando na sua intrigante dança esverdeada, arrebatando-nos para um distante e iluminado mundo encantado, gerado à volta das nossas cabeças.
Divertíamo-nos a alcançá-los com as mãos, onde os fechávamos, por momentos, para contemplar aquelas pequenas maravilhas cintilando, aturdidas, nas palmas das nossas mãos. Era um momento mágico, intemporal e de fascínio colectivo. Observávamo-los como se quiséssemos desvendar o mistério da maravilhosa luz. Depois, já refeitos, os pirilampos levantavam voo das nossas palmas, de encontro à intrincada dança desenhada pelos companheiros, no ar morno da noite.
Despertávamos, então, para a música que nos chamava para o largo da capela, invadindo e contornando os adultos na nossa velocidade infantil. Sentíamos aquela festa como nossa. Não tinha segredos para nós. Sabíamos de cor a sucessão dos eventos, que preenchiam, com notável nobreza, aquelas noites e tardes excepcionais. A marcha, com os seus arcos habilmente decorados, a luz dos balões, dançando à suave brisa, as saias coloridas que adornavam as ancas, agitadas pela batida compassada da música, as vozes juvenis, soltando a letra dos santos populares, a coreografia perfeita que cruzava e descruzava corpos, em efeitos visuais perfeitos; o cortejo das fogaças, que esperávamos com impaciência e curiosidade, cada ano, e as próprias fogaças que admirávamos de perto, quando descansavam nas prateleiras do pavilhão, sempre ricamente recheadas com iguarias, acomodadas em tabuleiros rectangulares murados, lindamente decorados, com esguios arcos que se intersectavam no ar, presos aos quatro cantos dele; a procissão dos pãezinhos, na qual participei em criança, carregando um dos lindos cestos e, mais tarde, já uma jovem feita, suportando o peso do pesado andor, de um dos santos que guardam os três altares da maravilhosa capela de Sº António.
Nos espaços calmos da festa, enquanto se aguardavam os espectáculos, nós, os mais pequenos, invadíamos o palco, como guerreiros implacáveis, desenhando nele intricadas coreografias nas nossas correrias.
Por volta da meia-noite, como quase sempre nos esquecíamos das horas, lá aparecia uma mãe a chamar o seu rebento, a que se seguiam outras. A minha, como acompanhava a festa da janela da sala de estar, na conversa com as vizinhas, limitava-se a acenar o braço e, quando a minha teimosia fingia que não via, lá vinha ela pelo seu pé, torcendo a boca em sinal de contrariedade, enquanto me puxava pela mão, vencendo a resistência das minhas pernas.
À noite, as casas adormeciam, embaladas pela alegre música dos artistas convidados, que animavam os bailes até de madrugada.
Mas a festa começava muito tempo antes. Era à noite que os infatigáveis vizinhos, depois de um dia de trabalho, (alguns tiravam férias nessa altura), se reuniam para assegurarem os serviços indispensáveis àquela festa popular. Algumas semanas antes, já as vozes agudas dos martelos e dos berbequins desafiavam as calmas noites primaveris. À noitinha, grupos de jovens reuniam-se nos barracões, por baixo da casa do caseiro, para realizarem os preparativos da festa. Dos barracões, passava-se aos palcos, onde se ensaiava a marcha, insistentemente, com paragens a meio, até se conseguir a perfeição exigida. Todos estes passos eram vigiados pelos nossos extasiados olhos infantis. Este ano, levei os meus pequenos até lá, e vi, com agrado, que todas as pessoas se mantinham fiéis à festa, tanto os participantes como os organizadores. São pessoas como estas, que, pelo seu empenhamento e determinação, às vezes vencendo obstáculos duros e contornando outros, (e houve alguns na história desta festa) que mantêm as tradições vivas. Esta festa é um exemplo disso mesmo. Bem hajam, por isso!
Fátima Nascimento
A música, saída dos altifalantes, lembrava-nos que a festa estava a começar. Daí a pouco, uns punhos fechados, batiam forte e apressadamente contra o vidro da porta da cozinha. Após o jantar, lá ia o nosso bando ao encontro daquele chamamento.
No corredor, que dava para os quintais do meu prédio, éramos presenteadas com aparecimento dos pirilampos esvoaçando na sua intrigante dança esverdeada, arrebatando-nos para um distante e iluminado mundo encantado, gerado à volta das nossas cabeças.
Divertíamo-nos a alcançá-los com as mãos, onde os fechávamos, por momentos, para contemplar aquelas pequenas maravilhas cintilando, aturdidas, nas palmas das nossas mãos. Era um momento mágico, intemporal e de fascínio colectivo. Observávamo-los como se quiséssemos desvendar o mistério da maravilhosa luz. Depois, já refeitos, os pirilampos levantavam voo das nossas palmas, de encontro à intrincada dança desenhada pelos companheiros, no ar morno da noite.
Despertávamos, então, para a música que nos chamava para o largo da capela, invadindo e contornando os adultos na nossa velocidade infantil. Sentíamos aquela festa como nossa. Não tinha segredos para nós. Sabíamos de cor a sucessão dos eventos, que preenchiam, com notável nobreza, aquelas noites e tardes excepcionais. A marcha, com os seus arcos habilmente decorados, a luz dos balões, dançando à suave brisa, as saias coloridas que adornavam as ancas, agitadas pela batida compassada da música, as vozes juvenis, soltando a letra dos santos populares, a coreografia perfeita que cruzava e descruzava corpos, em efeitos visuais perfeitos; o cortejo das fogaças, que esperávamos com impaciência e curiosidade, cada ano, e as próprias fogaças que admirávamos de perto, quando descansavam nas prateleiras do pavilhão, sempre ricamente recheadas com iguarias, acomodadas em tabuleiros rectangulares murados, lindamente decorados, com esguios arcos que se intersectavam no ar, presos aos quatro cantos dele; a procissão dos pãezinhos, na qual participei em criança, carregando um dos lindos cestos e, mais tarde, já uma jovem feita, suportando o peso do pesado andor, de um dos santos que guardam os três altares da maravilhosa capela de Sº António.
Nos espaços calmos da festa, enquanto se aguardavam os espectáculos, nós, os mais pequenos, invadíamos o palco, como guerreiros implacáveis, desenhando nele intricadas coreografias nas nossas correrias.
Por volta da meia-noite, como quase sempre nos esquecíamos das horas, lá aparecia uma mãe a chamar o seu rebento, a que se seguiam outras. A minha, como acompanhava a festa da janela da sala de estar, na conversa com as vizinhas, limitava-se a acenar o braço e, quando a minha teimosia fingia que não via, lá vinha ela pelo seu pé, torcendo a boca em sinal de contrariedade, enquanto me puxava pela mão, vencendo a resistência das minhas pernas.
À noite, as casas adormeciam, embaladas pela alegre música dos artistas convidados, que animavam os bailes até de madrugada.
Mas a festa começava muito tempo antes. Era à noite que os infatigáveis vizinhos, depois de um dia de trabalho, (alguns tiravam férias nessa altura), se reuniam para assegurarem os serviços indispensáveis àquela festa popular. Algumas semanas antes, já as vozes agudas dos martelos e dos berbequins desafiavam as calmas noites primaveris. À noitinha, grupos de jovens reuniam-se nos barracões, por baixo da casa do caseiro, para realizarem os preparativos da festa. Dos barracões, passava-se aos palcos, onde se ensaiava a marcha, insistentemente, com paragens a meio, até se conseguir a perfeição exigida. Todos estes passos eram vigiados pelos nossos extasiados olhos infantis. Este ano, levei os meus pequenos até lá, e vi, com agrado, que todas as pessoas se mantinham fiéis à festa, tanto os participantes como os organizadores. São pessoas como estas, que, pelo seu empenhamento e determinação, às vezes vencendo obstáculos duros e contornando outros, (e houve alguns na história desta festa) que mantêm as tradições vivas. Esta festa é um exemplo disso mesmo. Bem hajam, por isso!
Fátima Nascimento