Sexta-feira, 12 de Setembro de 2008
A minha avó andava aborrecida. O problema era o galinheiro. Havia já algum tempo que eu estranhava a aparência das galinhas: meias despidas de penas e havia uma que andava já meio nua, mostrando a feia pele cheia de altos. No chão daquele rectângulo de rede metálica, havia um colchão de penas. As galinhas metiam dó! Nem no choco elas permaneciam muito tempo, sempre em sobressalto. O problema era um galo que a minha avó se lembrara de comprar, no intuito de aumentar a população galinácea. O efeito produzido fora o contrário: a população não só não aumentara, como apresentava um cenário semelhante ao resultado de uma guerra. A população galinácea andava cabisbaixa, sobressaltada e em estado de alerta permanente. O galo não podia ver as galinhas e salvo uma que lhe fazia frente, embora nitidamente com medo, e apresentando também as sequelas das lutas, todas as outras estavam num estado lastimoso.
- O galo parece que tem o diabo no corpo! – queixava-se a minha avó paterna, olhando o bonito galo que lhe custara os olhos da cara.
Ela andara a namorá-lo durante aquela manhã no mercado. Era um belo espécime: todo emproado, deslocando-se majestosamente no pouco espaço de que dispunha, de alta crista vermelha bem direita no topo da pequena cabeça, e todo vestido de cores bem garridas. A mistura das cores com que se vestia atraía a atenção dos que passavam.
- O melhor é acabar com o problema de uma vez por todas! – aconselhava o meu pai, impressionado com aquela violência e o espectáculo que se descortinava do lado de fora da capoeira. – Aliás, nem sei do que estão à espera.
- Ora, do que havia de estar à espera? Que o teu pai arranje um tempo para o matar! – sentenciou a minha avó, enquanto os seus olhos apaixonados acompanhavam os movimentos do galo que parecia atento à conversa deles, tentando descortinar, através daquela língua estranha, utilizada pelos humanos, sorte que o esperava. Do meu canto, um pouco afastada daquele cenário de conversa, eu observava aquele bicho cujo comportamento era, no mínimo, estranho. Parecia desprender-se dele uma espécie e ódio inteligente, de que só alguns humanos são dotados. Olhando-o mais de perto, e acompanhando aquele ataque, cuja incompreensível fúria se manifestava de tempos a tempos, sempre que uma descuidada e arredia galinha se atrevia a aproximar do recipiente da comida.
Ficou decidido, após um julgamento sumário, a sentença de morte do galo. O meu pai viria ajudar assim que tivesse oportunidade. O meu avô duvidava da sua capacidade para imobilizar aquele animal. Calhou num dia de folga. Fomos todos. Tudo estava a postos e o meu avô, recém-chegado da horta, resolveu que ele daria bem conta do recado. O meu pai, embora desconfiado, limitou-se a deder-lhe o lugar. Ficámos todos, de longe, a assistir ao badalado fim do galo. Malga pronta, faca afiada, pescoço do galo torcido para controlar a força diabólica. O meu avô, debruçado nas pernas sobre o animal, começou a tarefa. A minha avó fugira, voltando as costas à morte do animal querido, mostrando a sua pena com algumas palavras. O meu pai e o meu avô irritaram-se:
- Mas quer ou não o animal morto? – impacientaram-se eles. – Tem é de escolher entre as galinhas e o galo.
- Vá lá! Acabem lá com isso. – pediu ela, ainda impressionada com a ideia de ver desaparecer o vistoso animal.
Assim foi. O sangue do animal começou a escorrer para a alva taça, tingindo-a de vermelho vivo, enquanto o animal estrebuchava. A determinada altura, o animal, em toda a sua força, libertou as asas dos pés do meu avô, (que afrouxara a força com que o segurava), e que exagerara no corte e ficara com a cabeça dele na mão. O mais estranho de tudo, foi vê-lo correr às curvas, e sem cabeça, pelo terreno que circundava os currais. O meu pai e o meu avô precipitaram-se atrás dele, evitando que o almoço fugisse da estreita tira da pequena quinta. Já cansados, desistiram e ficámos todos a assistir à estranha dança do animal sem cabeça. Levou alguns minutos até a força abandonar totalmente aquele estranho e elegante corpo colorido, e cair, finalmente, por terra. Ficámos ainda um pouco parados, chocados com a insólita cena a que acabáramos de assistir. Finalmente, o meu avô pegou no corpo inerte e entregou-o à minha mãe, para que começasse a difícil tarefa de depenar o animal. Falou-se deste acontecimento durante muito tempo, tirando dela as mais diversas conclusões.


publicado por fatimanascimento às 10:54
Segunda-feira, 08 de Setembro de 2008
Junho de 1974. O sol dourava as tardes refrescadas pela mansa brisa que sacudia a folhagem das árvores. Na terra batida à mistura com a pedra desenrolavam-se as mais diversas brincadeiras. Os risos elevavam-se serenamente no ar. Contudo uma nuvem assombrava, por vezes, o meu espírito: o exame da 4ª classe estava aí. Já havia a certeza de que tudo se manteria como antes do 25 de Abril. Iria ter de enfrentar esse espectro. Havia, porém, uma boa notícia – podia-se usar esferográfica em vez daquelas gordas canetas de tinta permanente, que a minha mão, dotada de pequenos dedos rechonchudos, não conseguia agarrar convenientemente. Já fizera uns treinos, em casa, na mesa da cozinha, mas a cópia acabava sempre com um ou mais borrões, originados pela queda da deselegante caneta, para já não falar da letra que ficava desfigurada com tal objecto. Estraguei uns quantos aparos à minha caneta de tinta permanente e o aparo de duas pertencentes ao meu pai, que eram de uma marca cara! E estava cansada daqueles treinos inglórios!
Umas semanas antes, a minha professora da escola primária havia conversado com a directora da mesma e tinha-lhe mostrado alguns cadernos das suas alunas, o meu incluído, para defender a sua tese: conseguir a autorização do Ministério da Educação para o uso das esferográficas (que todas as alunas já usavam) quebrando, deste modo, a hegemonia das canetas de tinta permanente. A resposta afirmativa ao pedido viera quase de seguida. Houve uma grande alegria geral. Contudo, aquele exame ainda era, para mim, um obstáculo que eu temia.
Fiz o exame, com as minhas inseguranças habituais, lutando contra um nervosismo intenso. Nada de novo. Havia uma prova escrita, no formato das até aí realizadas em papel de 25 linhas, com a mesma dobra lateral e o mesmo vinco superior certinhos, com a mesma estrutura das realizadas durante esse ano lectivo (e os prévios!) e, depois, mais uma oral onde éramos interrogadas sobre a matéria leccionada. Era nesta que estava incluída a prova do trabalho manual, embora realizada num outro dia. Nunca percebi bem isso…
Como sempre fazia, quando algum assunto me incomodava, eu desligava-me dele, tentando concentrar-me em assuntos mais descontraídos. Foi por essa altura, que uma vizinha minha, que andava no mesmo ano e na mesma turma, adoeceu. Pediram-me para lhe dar o recado do artefacto manual que se tinha de levar já meio feito, pois não havia tempo para o fazer todo durante a prova. Dotada de uma distracção crónica, ao mesmo tempo que evitava pensar no exame que me incomodava, eu esqueci-me de a avisar. Eu própria fiz o meu na véspera, quando a noite já ia avançada. Lembrei-me da minha colega, mas não fui autorizada a sair. Dormi com o coração apertado mas, no dia seguinte, inexplicavelmente, não me lembrava de nada. Só no caminho para a escola, quando uma colega se juntou ao grupo e falou no assunto, é que eu aterrei. A minha colega ficou aflita, pois não trazia nada com ela. A recém chegada colega prometeu arranjar-lhe um trabalho dela que não lhe saíra lá muito bem. Foi a casa a correr e regressou com aquele artefacto na mão e os utensílios necessários ao resto da confecção. Não era muito mas ajudava. Olhámos o artefacto. Tratava-se de um defeito mínimo! Durante a observação dos artefactos realizada pelas professoras do júri, lembro-me de ter o coração apertado, desejando que nenhuma delas desse pelo defeito que era mínimo! A outra deu pelo ínfimo defeito, logo desvalorizado pela minha professora! Ficámos todas na dúvida! E todas com os olhos postos em mim!
Tudo correu bem até à saída das notas, quando reparei que ultrapassara uma das melhores alunas da turma que era a minha vizinha. Eu tive 15 e ela teve 14 valores. Foi o descalabro! Os pais acusaram-me de ter sido a culpada daquela nota, insinuando que fizera tudo de propósito para a prejudicar! Ainda me lembro da porta da frente de grossa madeira castanha entreaberta, realçando das paredes de um azul forte, onde os pais dela gritavam comigo, empurrando a miúda para trás deles, que teimava em se mostrar. Eu estava com outras miúdas. Tínhamos ido dar a notícia da nossa passagem! Fiquei chocada e confusa com tal atitude. Que eu tinha no pai dela um inimigo, já eu me apercebera há muito, mas o que me incomodava mais era a reacção da mãe, habitualmente mais calma. A porta fechou-se finalmente com um estrondo. Voltámos as costas e saímos em silêncio. Aquela casa fechara-se para mim! Aguentei a guerra até ao momento em que os pais se lembraram de ir falar com a professora, sempre com o meu nome erguido no punho como uma espada. O ambiente só acalmou, quando a professora explicou aos indignados pais, e mostrou, que a nota não se devera ao artefacto manual apresentado pela filha, mas à própria prova escrita onde ela, ingloriamente, havia resvalado. Foi então que a paz regressou, pouco a pouco, ao bairro…

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 15:50
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