Domingo, 16 de Novembro de 2008
(Ao meu vizinho, o Zé Carlos, o P.A., que para além de bom vizinho, foi um bom amigo. Lembras-te desta situação?)


Era uma daquelas manhãs brilhantes que sucedem aos cinzentos dias de chuva. Os raios solares trespassavam a atmosfera e a folhagem minúscula das oliveiras, iluminando as poças já secas do carreiro que mostravam os imensos, alvos dentes afiados, descobertos pelas incansáveis bátegas de chuva. A atmosfera, ainda repleta de humidade, elevava no ar o cheiro a terra húmida. Eu dirigia-me a casa, olhando a magnífica paisagem, cuja luz lhe dava um aspecto mágico, sentindo que pertencia a esse mundo, que enche o coração das crianças. Subitamente, olhando mais atentamente, colei os olhos num roliço pássaro de penugem azul clara, bordada a negro nas asas e no pescoço. Observei-o melhor. O animal de curto bico curvo e cabeça ligeiramente inclinada para o lado, poisado num fino ramo de oliveira, observava, lá do alto, todos os movimentos ligados à terra. Fiquei estupefacta! Um periquito?! Mais um que fugira da gaiola. Bem, pensei, o dono há-de vir à sua procura. Esqueci o assunto. Quando voltei a sair, o pássaro ainda lá se encontrava, sempre atento. Desta vez, mais alguém dera pela presença dele. O Zé Carlos, meu vizinho, cujo apartamento, de rés-do-chão confinava com o meu, também dera por ele. Perguntou se era meu. Acenei negativamente com a cabeça. Depois de nos questionarmos sobre os possíveis donos, decidimos que alguém teria de ficar com ele, ou morreria. Nascido numa gaiola, ele não saberia encontrar comida na liberdade. Olhou para mim. Eu fiquei indecisa. Se aparecesse o dono, só teria de o entregar., insistiu. E não sabíamos se ele apareceria, embora desconfiássemos, que deveria ter fugido de um quintal próximo. Ele não poderia tomar conta dele, uma vez que ele já tinha as gaiolas cheias. Eu não tinha gaiola. Ele pediu uma. O dono veio atrás. Também ele era de opinião que alguém deveria tomar conta dele. Eu aceitei a responsabilidade. Mas como o apanharíamos? Facilmente, respondeu o meu amigo de infância, vou lá acima buscá-lo. Ele não foge?, perguntei-lhe, ainda não muito convencida que ele conseguisse tal proeza. Ele subiu lentamente, evitando assustar o pequeno animal e avisando-me que não fizesse movimentos bruscos. Fiquei de cabeça erguida, acompanhando todos os seus movimentos. Parecia um gato a deslizar elegantemente pelos ramos da velha oliveira. Não podia subir mais, sob pena de descer mais depressa do que subira. O animal experimentou uma espécie de dança, sempre acompanhando os movimentos daquele audacioso humano. Estendeu cuidadosamente o braço e estreitou meigamente o inquieto animal na mão. Vês?!, a voz dele voltara ao normal, Que te disse eu? Ele não ofereceu qualquer tipo de resistência. Colocámos o animal dentro da gaiola, já apetrechada de comida e água. Levei-o para casa. A minha mãe admirou o animal. É bonito!, comentou. Não tarda nada está aí o dono à procura dele., avisou ela. Eu estava preparada para isso. Colocámos a gaiola na parede, pendurada num prego de ponta arrebitada. Passaram muitos dias, sem que ninguém reclamasse o pássaro. A mãe consentiu em comprar uma gaiola. Devolvi a emprestada ao dono, agradecendo a amabilidade. Todas as manhãs e todas as tardes, quando partia e regressava da escola, lá estava ele de cabeça inclinada, em jeito de saudação. Era o meu pássaro. Nunca tivera um. Um dia, quando regressei da escola, encontrei a gaiola vazia. A tristeza invadiu-me. Foi como se a noite tivesse estendido a sua manta negra sobre mim. O meu vizinho veio visitar o animal. Então?! O que lhe fizeste?!, perguntou admirado. Eu encolhi os ombros e contei-lhe tudo. Deve ter sido o dono que o veio buscar!, comentou ele, depois de ouvir atentamente a minha breve história. Mas poderia ter esperado que viesse alguém!, exclamei indignada, Isso não se faz! Pois, exclamou o meu amigo cheio de pena. Não penses mais nisso., aconselhou, Pede aos teus pais que te comprem um! Mas eles não compraram. Não gostavam de ver alpista espalhada pelo cimento do quintal! Retirámos a gaiola da parede e arrumámo-la, para sempre!


publicado por fatimanascimento às 01:38
Terça-feira, 11 de Novembro de 2008
Sempre achara estranho! Já tinha visto muitos com pouca água ou mesmo sem nenhuma, no período mais seco do ano, mas um que eu nunca conhecera com água…! Não se lhe conhecia utilidade. Talvez a tivesse tido em tempos… Uns tempos já muito idos! Quando a pequena capela seria um mosteiro que abrigava frades, não sei de que ordem, talvez de S Francisco Xavier, dando algum crédito aos painéis de azulejos que decoram as paredes daquele pequeno monumento, com um charme único. Descobri, com a ajuda da senhora que, na altura velava por ele, a entrada para um subterrâneo que começava na sacristia, escondida atrás de um armário e já selada, por uma questão de segurança, e outro caminho, atrás do altar, que descia em espiral, e cujo percurso já se encontra também interrompido, devido a uma derrocada. Pouco se sabe da sua história. Os monges parecem ter levado o segredo com eles. Não se sabe se ela teria feito parte de um complexo de edifícios religiosos mais alargado. Se assim foi, única construção que resistiu, foi a capela. O que é curioso, é que a poucos metros dela, estava um poço que nunca foi observado cheio. Talvez fizesse parte de um vasto complexo agrícola, mas, se assim fosse, quem o cavara saberia fazê-lo de forma a que ele não perdesse, pelo menos, a preciosa chuva que lá caía. Embora as suas paredes fossem de pedra bem talhada e sobrepostas, o fundo parecia ser de terra, que parecia absorver a água que lá se acumulava nos dias mais chuvosos. A área que circundava a pequena capela, estava coberta de oliveiras e algumas figueiras. Algumas das oliveiras eram tão velhas, que só sobreviviam graças às paredes do tronco, encontrando-se todo o seu interior devastado. Desconheço se, alguma vez, alguém se interessou por aquela parte esquecida, da zona alta de uma pequena vila, propondo escavações para tentar descobrir mais alguma informação sobre aquela capela. As tentativas foram sempre superficiais e estavam ligadas aos mais audaciosos. Ouviam-se breves histórias sobre este e aquele que tentaram percorrer os subterrâneos, para descobrir a saída dos longos e misteriosos subterrâneos. Uns diziam que a saída se encontrava no castelo, onde os monges, e quem sabe, mais pessoas, se refugiariam nos tempos conturbados das invasões. Pensa-se que o poço seria uma das entradas, ou parte do traçado desse subterrâneo (ou subterrâneos!). Por ali, entrariam os que trabalhavam as terras ou sairiam aqueles que procuravam fugir da capela. Mas estas são meras suposições. E agora é tarde demais. O velho poço teve muitas utilidades, já que se desconhecia a verdadeira, e serviu de lixeira, onde eram depositados os pinheiros natalícios, entre outro lixo. Mais tarde, com a venda dos terrenos, onde ele se encontrava, todas as árvores foram arrancadas, o que transformou os mesmos num imenso lago castanho claro, que ameaçava galgar o carreiro de terra batida, que dava acesso à entrada das vivendas, de onde já se descobriam algumas pedras brancas escavadas pelas chuvas fortes. A solução encontrada pelos funcionários da câmara, que também nunca haviam conhecido utilidade alguma para ele, e estimulados por alguns moradores, foi abrir um buraco na harmoniosa parede de pedra, para escoar o excesso de água. Mas esta era tanta que não dava para escoar toda, embora o buraco aberto projectasse a água, que nele entrava, com violência no fundo. A água desaparecia e só ela descobriu o mistério, se o havia, daquele poço. Hoje, ele está enterrado debaixo de uma manta grossa de alcatrão, não passando de uma velha memória de infância, onde eu e mais algumas vizinhas, nos perdíamos em buscas de tesouros perdidos. Se saber que o maior tesouro é a memória humana.


publicado por fatimanascimento às 09:36
Quinta-feira, 06 de Novembro de 2008
Numa terna manhã de Primavera, em que os raios davam aquela aparência de floresta mágica ao olival, devida à intensa luz oblíqua que abraçava as ervas tenras, travada só pela escura terra húmida, eu passava mesmo à beira dele, quando ouvi um choro quase imperceptível de um animal. Parei à escuta. O som vinha dali perto. Entrei com cuidado no olival, e comecei a afastar as ervas, na tentativa de encontrar o autor daquele pranto. Fartei-me de dar voltas, e mais voltas sem nunca conseguir localizá-lo. Não fazia a menor ideia do que poderia encontrar. O pobre animal voltou a manifestar-se, o que encurtou a minha área de busca. Afastei mais umas ervas, e, junto do tronco oco de uma velha oliveira, escavado pelo tempo, estava um corpo pequenino, coberto de espinhos, com um focinho afilado, no cimo do qual sobressaíam dois lindos olhos. Fiquei encantada com o achado. Olhei em volta, à procura dos progenitores. Esperei, junto do pequenito, que os pais regressassem da sua volta. Nada. Já a manhã ia alta, quando dei pela espera terminada. Olhei para o pequenito, sem saber o que fazer. Não me apetecia deixá-lo, mas não tinha a certeza de que levá-lo comigo, seria a melhor solução. Fiquei parada, olhando-o, indecisa. Não havia dúvida de que já me afeiçoara ao animalzinho. Ele era o meu pequenino. Tomei uma decisão. Iria deixá-lo e voltaria mais logo, se os pais, até lá, não tivessem chegado, levá-lo-ia comigo para casa. Durante a tarde, desloquei-me, por várias vezes, ao local, para me certificar de que o bebé ouriço estava bem, sempre com a preocupação de olhar em volta para ver se encontrava algum dos pais, nas imediações. Nada. Comecei a ficar frustrada. Teria sido o animal abandonado? Não era muito provável, mas acontecia… ainda me lembrava do lindo coelho bebé, cuja mãe se recusara a alimentá-lo. Morrera seco. Ainda se lembrava do choque que sofrera, quando o encontrara morto. Teria acontecido algo semelhante? Ela observou o pequenito. Ele não apresentava sinais de abandono, estava gordinho. Cada vez mais confusa, eu não sabia explicar aquela ausência e muito menos sabia o que fazer. Regressei a casa. Chegado o final da tarde, voltei lá. A situação mantinha-se. Peguei no pequenito, levei-o para casa e transformei uma caixa de sapatos numa cama, onde coloquei um tecido grosso e escuro, que me pareceu quentinho. Coloquei-o dentro dela, aconchegando-o ao tecido macio. Pequei num minúsculo biberão de bonecas, com uma ponta fina e estreita de plástico e, muito a medo, coloquei no bico mais pequeno do fogão, um púcaro com leite a aquecer. Quando me pareceu morno, rodei o botão para desligar o gás e coloquei o biberão dentro dele. Coloquei-lhe a tampa e debrucei-me sobre o animal, tentando introduzir a ponta afilada na sua boca pequenina. O animal recusou o contacto com aquela tetina rija, mas como a fome devia apertar o seu estômago, ele lá fez um esforço. Era maior a quantidade de líquido que escorria da sua boca do que o que se aproveitava. Eu lá ia, com paciência, enxugando, com um farrapo branco, que a minha mãe cortara de um lençol velho, a sua boquita, evitando que molhasse a cama. Passado um bocado, ele estava a dormir. Olhei-o com ternura. Chegada a casa, a minha mãe pareceu gostar do animal, e não colocou obstáculos. Tudo correu bem, durante uns dias. As minhas vizinhas vieram conhecê-lo. Até que uma manhã, a minha mãe acordou mal disposta, o que acontecia muitas vezes. Recusou-se a ajudar-me, dizendo que o animal já começava a deitar cheiro à cozinha. A caixa de sapatos encontrava-se em cima de um dos dois bancos baixos, que não tinham uso, arrumados atrás da porta. Eu que me desenrascasse, gritou-me do tanque onde lavava a roupa, situado em cima de uma plataforma de cimento liso, à esquerda, à saída da porta. Eu, já habituada à ajuda, sobretudo, no fogão, hesitava em voltar a mexer-lhe. A voz ácida da minha mãe ameaçava-me com os perigos dele, quando eu já desesperada com o choro do animal, tentava acender o bico mais pequeno. A voz ácida sugeriu que lhe desse o leite frio. Mas retirara-o do frigorífico, protestei. Não queria mais mexidas no fogão. Fiquei desesperada, sem saber o que fazer. Tentei aquecer o leite na mão quente, enquanto o animal desesperava. Quando me pareceu melhor, levei o bico do biberão com medo à sua boquinha. O animal rejeitou. Informei a minha mãe, que se manteve inflexível. Dei-lhe só o indispensável para lhe matar a fome. O ouriço bebé não aguentou e morreu, passado um tempo. Foi um grande choque e um longo luto, acompanhado de um forte sentimento de culpa. E tudo piorou quando, passados uns dias, eu, no mesmo carreiro, ouvi um lamento igual àquele que havia escutado, uns dias antes. Só que este era mais nítido. Afastei as ervas, e não precisei de procurar durante muito tempo. Uma imensa bola de espinhos, desesperava, enquanto dava voltas, procurando um ser pequeno, parecido consigo, que lhe era muito querido. Fiquei em estado de choque. Encostei-me à velha oliveira. A aflição e o desespero do animal adulto eram notórios. Aprendi, da forma mais dura, que nunca se deve pegar num animal, e levá-lo para casa. Mesmo que as nossas intenções sejam as melhores! Mesmo que eles se encontrem sozinhos, por algumas horas, ou mais, os pais voltam sempre para eles!


publicado por fatimanascimento às 09:11
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