Quarta-feira, 04 de Julho de 2007
Na arca das minhas memórias, muitas se vão perdendo no pó do tempo, asfixiando naquele espaço escuro e exíguo que engloba a infância. O meu tio faz parte desse espaço exíguo que, com a passagem dos anos, vê o seu precioso material desfigurado. É por isso que resolvi falar dele, para que a sua imagem escape à voragem das traças temporais...
O meu tio era o irmão mais velho do meu pai e foi uma pessoa importante na minha vida. Conheci-o sempre assim: uma versão mais baixa e mais forte do meu pai. A sua imagem continua viva na minha memória: a pele do seu rosto largo curtida pelas ceifas ardentes do sol alentejano, os pequenos olhos fundos e sorridentes que exalavam uma inteligência fraterna e aberta, protegidos pelas lentes bifocais, a boca de lábios finos sempre prontos a desenharem o seu característico sorriso espontâneo, a cicatriz que adornava o lábio superior, a voz grossa e agradável que o identificava em todo o lado.
Foi o companheiro de brincadeiras do meu pai, apesar dos três anos e meio que os separava. Possuidor de um grande carisma, ele arrastava o meu pai para as brincadeiras, entreajudando-se sempre nas dificuldades. Unia-os uma amizade muito forte.
Desde pequena que me lembro de ter uma verdadeira loucura por ele. A alegria que emanava todo o seu ser, a boa disposição, a sua bondade e a sua naturalidade franca, faziam dele uma pessoa conhecida e amada na vila, onde trabalhou muitos anos.
Eu conhecia o horário em que o carro do lixo da câmara passava a recolher os resíduos domésticos acumulados nos baldes revestidos de plástico ou de jornais desfolhados, colocados aos portões e recolhidos por homens que os despejavam nas gavetas laterais do camião. À noite ou de manhã, ele lá estava, àquela hora e, quando me descuidava com as horas e ouvia o ronco do motor de arranque, anunciando o início da marcha, lá ia eu a correr atrás do camião. Os colegas dele, que recolhiam o lixo, batiam na enorme lata do camião, chamando a sua atenção para a garotinha que corria e o chamava. Lembro-me da alegria dele, quando me viu, e da sua preocupação, olhando-me nos olhos e explicando-me que era perigoso correr assim atrás do camião. Já não era a primeira vez que tal acontecia. Um dia vira-o, em pleno centro da vila, e arrancara a correr na direcção dos seus braços abertos, deixando uma mãe preocupada aos gritos, enquanto o meu pai tentava serená-la, admoestando-a pelo barulho que fazia no seu local de trabalho. Por várias vezes, eu parei para olhar para trás e fitar a preocupação maternal, retomando sempre a marcha sempre em direcção a ele. Lembro-me de ele me apertar nos seus braços fortes, aconchegando-me à sua alegria contagiante.
Lembro-me também que, um dia, os meus avós paternos tinham ido a nossa casa almoçar, por ocasião dos anos do meu pai, julgo eu, e a minha avó levantara-se da mesa, depois de comer, e perguntara quem lavaria aquela merda. Foi o caos. Ninguém sabia o que dizer! Uma tensão de cortar à faca... o meu pai levou os meus avós de volta a casa...e, no regresso, as culpas cairam em cima dele porque não defendera a minha mãe. O caso foi grave... O meu tio ficara de aparecer mais tarde... e assim fez. Quando chegou, o clima pesado quase não deixava respirar. Mesmo a sua alegria parecia incapaz de cortar o véu carregado que pairava sobre as nossas cabeças. Inteirou-se da situação. Depois de se ter sentado à mesa a convite dos meus pais, ele propôs-nos uma saída até à terra onde morava e que ficava ali perto. Depois de qubrar a resistência dos meus pais, lá fomos todos. Foi a solução correcta.
Saímos. O ar quente de Junho queimava-nos a pele desprotegida, embora o sol do fim da tarde enfraquecesse com a hora avançada. O meu tio fez questão em me levar no carro dele. Pelo caminho, ele falava comigo num tom de voz terno, dizendo que eu não me podia deixar afectar pelos problemas dos dois, que eram mais do que habituais.
Nas frequentes visitas que fazíamos aos meus tios e primos, sempre que íamos a casa dos meus avós (e eram bastantes as vezes!), dávamos a volta e passávamos por casa dos meus tios, para os ver. Numa ocasião, lembro-me dele sentado no topo da mesa rectangular, o seu lugar habitual, voltado para a porta da entrada, os seus sete filhos e a mulher sentados à mesa e o ar alegre e feliz que se respirava naquela casa. Toda a gente falava, ria, trocava impressões... ainda hoje os meus primos são unidos. Ele teve esse mérito, juntamente com a minha tia Beatriz.
As pessoas, hoje já com uma certa idade, e que, quando o conheceram eram ainda gaiatos, recordam-no agora com muita saudade. Falam dele com admiração, pela pessoa que ele era e que o fazia entender as pessoas e as situações. Falam hoje ainda do seu carisma... Também eu agradeço a Deus aoportunidade que me deu de conhecer uma pessoa como ele. De todos os desaparecidos, é dele que o meu pai tem mais saudades... apesar de amar toda a família! Eu, por meu lado, as recordações que tenho, e não são muitas, infelizmente, estão mais ligadas à sua maneira de ser alegre e cativante, tão diferente do irmão, mais introvertido e à maneira como o meu pai e ele se entendiam. O meu pai junto dele era outra pessoa!


publicado por fatimanascimento às 10:17
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