Quinta-feira, 24 de Julho de 2008
Já havia data marcada. A expectativa pairava no ar à mistura com alguma ansiedade. Era um grande acontecimento, pois estaria presente o, então, presidente da república portuguesa, o almirante Américo Tomás.
Muito tempo antes começou o burburinho gerado pelo grande acontecimento. Pessoas reuniam-se ocasionalmente, na rua, para o comentarem com entusiasmo. As mais idosas esperavam ansiosamente o dia em que a sua capela passaria a ter uma missa, evitando as deslocações forçadas à central zona baixa da vila.
O dia acordou cedo. O sol espreguiçou os seus longos raios mornos, pronto a acompanhar a inauguração programada. A capela, indiferente à agitação criada à sua volta, dormitava ainda, cansada da agitação dos preparativos, toda ela enfeitada para a ocasião.
Por volta da hora marcada, algumas pessoas começaram a agrupar-se nas imediações da capela, esperando o convidado de honra que presidiria à cerimónia. As senhoras mais idosas mostravam a sua impaciência e alegria mal contidas, com a chegada do almirante, dir-se-ia um grupo de fãs à espera do seu ídolo. As janelas foram-se abrindo, pouco a pouco, retomando a rotina diária, só com uma diferença: a permanência dos donos nos seus postos de vigia. Alguns vizinhos aproximaram-se para presenciarem, de perto, o acontecimento histórico.
Eu era uma peça da estreita moldura de pessoas à espera daquela pessoa tão importante. Constava que não se demoraria muito tempo. Demorar-se-ia só o tempo suficiente, retomando a sua marcha rumo ao outro destino que o esperava.
A chegada do carro presidencial foi saudada com gritos aplausos. O senhor calvo e gordo, simpático, saiu, sorridente, do enorme carro preto, saudando a pequena multidão que o aplaudia. Após a sua recepção pelas autoridades locais, o corte da fita e uma visita rápida, pela formosa capela, a moldura estreitou-se à sua volta e o senhor viu-se rodeado pelas idosas viúvas que o abraçavam e lhe dirigiam palavras carinhosas. Eu observei aquele senhor idoso e simpático. Perto de mim, vi um vizinho acompanhado pela filha. Fiquei admirada, porque não estava à espera da presença deles. A dada altura, ele incitou a filha a cumprimentá-lo também. Como a miúda resistisse, ele insistia. Eu, ao ver aquela cena, decidi-me e avancei para o senhor, e preguei-lhe dois beijos nas bochechas salientes. O senhor pareceu-me surpreendido. De volta ao meu lugar, olhei para a minha colega, mostrando-lhe que o senhor não mordia. Os olhos do pai trespassavam-me de ódio. Eu compreendi, então, que aquele momento não me estava destinado mas à filha. A presença da televisão era a responsável.
O senhor, gordo e afável, despediu-se dos ininterruptos aplausos do pequeno grupo, avançando sempre na direcção do carro que o esperava, seguido da sua também pequena comitiva.
Passados alguns dias, comentando o acontecimento ao portão da casa dos vizinhos, foi comentada a minha audácia pelo pai da menina ao outro vizinho. Não sei o que mais me doeu se o comentário do que assistiu ou o do outro quando respondeu:
- Cumprimentou uma grande coisa, deixe lá…! – confortou-o o vizinho
- Também não apareceu na televisão! – retrucou o outro, rindo-se. – Estive atento às notícias e das vezes que eu vi, nada ficou registado nas imagens.
Em casa nunca se discutira política, nem nunca se falara dos problemas ligados a ela. Só pela voz dos meus vizinhos eu percebi, por alto, que o senhor gordo e afável não era muito querido.
Hoje, sempre que recordo aqueles momentos, não sei quem era pior, se os vizinhos se aquele senhor afável de quem não tinha queixa nenhuma.


publicado por fatimanascimento às 00:41
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