Segunda-feira, 19 de Maio de 2008
Lembro-me delas. Ambas grandes, grossas e pesadas. Estavam encostadas a um canto da sala, ao lado dos mapas por onde estudávamos a geografia do nosso país e das ex –colónias. Sempre fui uma aluna sonhadora e, como tal, muito distraída, o que me valeu alguns sustos, com a cana da índia que, muitas vezes, aterrava violentamente sobre a minha cabeça, fazendo esvoaçar os meus assustados cabelos, mas só me lembro de ter apanhado uma vez, duas reguadas.
Não, nunca fui uma boa aluna. Tanto tinha notas muito boas, médias como notas más, no meu percurso escolar acidentado. Era demasiado distraída para estar atenta o tempo suficiente para compreender a matéria, a não ser quando esta estimulava a minha imaginação, aí, eu lia, a matéria imensas vezes, o que compensava as horas escolares perdidas. Nas minhas provas, naquele rectângulo que nós dobrávamos, do lado esquerdo do papel grosso, de linhas a perder de vista, a minha professora escrevia, numa caligrafia rabiscada, quase invariavelmente, a mesma queixa de sempre - “Podia ser melhor, mas é muito distraída!”
Éramos imensas alunas. As mais altas ocupavam as carteiras do fundo da sala. Eu estava ao meio mais a minha eterna companheira de carteira, a Manuela, de imensos cabelos loiros e olhos castanhos. Era tão despistada como eu!
Um dia a professora dissera que iríamos fazer um ditado daquela lição que acabáramos de ler tão mal. O trabalho de casa consistia em ler o texto para nos prepararmos para o ditado e quem tivesse mais de dois erros levaria o número equivalente de reguadas. A leitura e a ortografia foram sempre o meu forte. Passava horas a ler os textos dos meus livros de leitura, alguns dos quais, alguns poemas, cheguei mesmo a decorar. No dia seguinte, o ditado foi feito e corrigido na aula. Tive um erro. A maioria das colegas tivera mais, o que desesperou a professora. Mais um ditado agendado para o dia seguinte do mesmo texto. Eu pensei que já estudara tudo, pelo que não teria de trabalhar mais aquele texto. Com o que eu não contara fora com o meu pânico. Fiquei confusa com a ortografia de uma palavra que ressalvei, errei, ressalvei… numa hesitação e confusão como jamais me acontecera. Um erro, eu sabia que tinha, mas o outro… desesperava por encontrar a solução certa. Qual delas seria? A minha desesperada intuição, ajudada pela toldada memória visual, indicava-me uma delas… O que me tinha acontecido? Teriam sido as ameaças da professora, no início da aula, mais terríveis que as da véspera? Quando chegou a minha vez, lá estavam os dois erros marcados. Duas reguadas estavam certas. Meti-me na fila e esperei pacientemente a minha vez. Quando ela chegou, ainda me tentei defender, com o ditado da véspera, onde tinha tido só um erro. Toquei ainda na palavra que aparecia bem escrita várias vezes e falei-lhe da confusão. A professora, que tomara tudo quanto eu dissera em consideração, parecia querer voltar atrás. Mas as colegas, acumuladas lá no fundo da sala, defenderam que ontem era ontem e que eu tinha de levar como as outras. Levei uma reguada em cada mão. Esfreguei as mãos ainda dormentes da batida. Sentei-me, humilhada com a injustiça e a falta de solidariedade das colegas soerguidas nas carteiras, apontando violentamente na minha direcção, como carrascos sedentos de sangue.

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 06:51
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