Sábado, 03 de Dezembro de 2011

O sol baila nas folhas das árvores acompanhado da luminosa aragem. Junto ao Forte de S. Clemente, cinco bancos de jardim, apresentando o cinzento do verniz lascado, contemplam o celestial azul puro e diáfano. Apesar da aragem fresca, o sol queima-me a pele com os seus braços ardentes como ferros em brasa. A folhagem verde-escura que veste as árvores, começa a tingir-se de amarelo. Algumas caem chocando violentamente contra a minha figura debruçada sobre um “livro de bolso” que tento ler desde há uns dias para cá, sem grande sucesso. Como é a biografia de uma simpática personalidade da História recente, do século passado, faço um esforço. O cinzento forte adormecido eleva-se à minha frente e esfrega os olhos despertando dos seus longos sonos seculares. Olha-me intrigado. Talvez até aborrecido. Não sei. A minha presença constante parece perturbá-lo profundamente. Os seus olhos faíscam de curiosidade e alguma desconfiança. Talvez até alguma vaidade. Nunca tivera espectadora tão fiel e interessada. A sua curiosidade incomodava-o. Queria regressar à privacidade do seu sono, mas sabia que era difícil! Que se passava consigo?

Tento regressar à leitura. Mas tudo parece conspirar para me distrair. São os turistas que passam de máquina fotográfica espreitando a paisagem sobre o rio no final da tarde. São os habitantes com os quais cruzo meia dúzia de palavras simpáticas. São as crianças correndo livremente à frente dos pais que seguem os seus divertidos e entusiásticos passos. São as conversas em alta voz ao telemóvel…

Subitamente, uma peluda massa negra encaracolada entra no recinto da praça a uma velocidade estonteante. Parece um fugitivo em busca de asilo. Passa pelo banco onde estou sentada e trava bruscamente mais à frente. Dá meia volta e regressa aos meus pés. Olha para mim com uns avaliadores olhos meigos. Salta para o banco e senta-se a meu lado, virando-me as costas. Parece querer encontrar no ar fino um buraco para se esconder. Volta-se resolutamente para mim. Encara-me, por momentos, e olha na direcção do inacessível nobre forte. Estendo o braço e acaricio a sua cabeça molhada atrás das orelhas. Fica quieto apreciando o carinhoso e simpático gesto. Volta o focinho escuro para mim com ar reconhecido. Noto os vestígios de areia no seu focinho. Minúsculas partículas de areia que incendeiam o seu focinho ao ar luminoso. Noto a coleira colorida e percebo que tem dono e que este deve andar à sua procura. Não me enganei! Passados alguns momentos, ouve-se um fino silvo humano. O cão ergueu as orelhas. Reconheceu o som. Procura refúgio no espaço entre o banco e as minhas costas. Demasiado estreito! Parece transtornado. Procura avidamente um local para se esconder numa tentativa desesperada de não ser encontrado. Um vulto desenha-se no ar, fora do recinto da praceta. Chama-o. O cão foge para o banco frente ao meu, procurando refúgio nas pernas de um senhor deformado pelo excesso de peso. Regressa a mim, sem saber o que fazer. O dono aproxima-se e chama-o. Parece convencido a segui-lo. À saída da praceta, numa inesperada decisão, regressa a mim. Não me quer deixar. Quer protecção! Leio na sua atitude o receio. O dono voltou, novamente, para trás.

- Anda! Anda lá, que já não vais mais ao banho! – promete o dono falando, divertido, com ele. O cão não se decide.

- Tu queres, é colo! – observa o dono de brinco na orelha aproximando-se perigosamente de mim e envolvendo o pequeno animal com o braço.

E o pobre lá vai, contrafeito, embalado pelo passo resoluto do homem e olhando desesperadamente para trás como um fugitivo que acaba de ser apanhado! E logo quando está prestes a conseguir atingir o amado exílio que o põe a salvo das mãos torturadoras!

E a tarde cai sobre o recinto exterior à fortaleza. E com ela o sol que fatigado, se prepara para mergulhar no merecido descanso.

Olho em redor. Nada me prende mais àquele espaço. Levanto-me e vou até ao muro de onde se avista a comunhão de rio e mar, numa calma que se espelha nas brasas sulcadas na superfície aquática. Olho a maré que vazou deixando a descoberto o areal ainda molhado. Caminho até à passadeira de madeira gasta, no fim da qual um barco parece estar em apuros mecânicos. Duas mulheres entendidas debruçam-se sobre ele, buscando a causa da insuficiência motora. Depressa chegam a uma conclusão. Sabem como devem proceder. O alívio nota-se-lhes na voz. Subo as escadas do caminho de regresso. A área está limpa. Não se vê ninguém. Viro à esquerda. O sol espera-me para mais uma despedida. Percorro a marginal até ao farol prestes a acordar para mais uma noite de vigília costeira, atirando a sua luz pelo ar escuro da noite até se perder na ignota distância, alheio ao brutal e intermitente esforço produzido. Adormecerá quando o sol se erguer, de novo, pronto para a sua amada tarefa rotineira.

 

Fátima Nascimento



publicado por fatimanascimento às 09:03
Terça-feira, 05 de Junho de 2007
Chegaste numa tarde quente e abafada de Agosto. Eras pequeno, todo vestido de castanho, com uma capa e máscara negras, de onde mal se distinguiam os olhos. Estavas muito quieto, sentado na traseira de uma carrinha branca, a cabeça de lado manifestando um inteligente interesse pelo desafio que te rodeava. Nem sinal de trauma por te terem arrancado violentamente ao teu meio familiar, nem sinal de medo frente ao desafio que era a tua nova vida. Nada. Só uma curiosidade meiga e divertida e um interesse profundo por tudo o que te rodeava. Entreolhámo-nos. Tu com a tua cabeça à banda, espreitando pela porta traseira da carrinha, dentro da tua gaiola , eu extasiada, de olhos muito abertos, completamente rendida à tua beleza. Não sei quanto tempo estivemos assim. Não parecias cansado depois de duas viagens consecutivas, uma até à capital, a outra de lá até à província. Só uma fragilidade se desprendia de ti. Depois dos trâmites normais, chegou a altura de pegar em ti. Peguei em ti com um cuidado e uma ternura muito grandes, como se fosses feito de um material muito raro e frágil, e tu entregaste-te com uma confiança que me enterneceu ainda mais. Desde aqueles primeiros momentos, a amizade entre ser humano e cão estreitou-se para sempre. Era como se um fio invisível, intenso e forte nos ligasse. Com o tempo, foste crescendo sempre fiel, sempre divertido, sempre amigo, sempre meigo. Nunca me desiludiste. Foste sempre aquilo que eu esperei de um cão. Eras um membro mais na nossa família, o quinto de quatro membros. Protegias-nos com a tua vida, aquela que tu nos confiaste sem reservas. Lembras-te da nossa visita à cascata? Aquela em que tu e os miúdos se divertiram tanto, que sairam cansados de lá. As explorações, os salpicos e o ruído da cascata, a paisagem em redor deram uma tarde de intensa actividade. A tarde morna convidava ao irrestível banho nas esverdeadas águas límpidas e sedosas e os risos das crianças misturavam-se com os teus alegres latidos. Este foi um dos poucos momentos de felicidade plena. Quando regressámos foste cercado por cinco pequenos cães rufias, que se sentiam fortes por não terem uma trela como tu e pelo seu número superior. Tu ladraste tentando mantê-los à distância. Mas eles insistiram, rodeando-te. Tu, já impaciente com a insolência deles, ladraste com mais força baixando a cabeça na direcção deles, qual touro pronto a investir, avançando na sua direcção. Reparaste como os cobardes fugiam?Foi só o Bruno dar-te mais trela. Mostraste que não tinhas medo. Mas não lhes fizeste mal. Assim que eles te mostraram a cauda, desinteressaste-te deles. Lembras-te daquela vez em que, pela primeira vez, fomos ao treino com o senhor João? O senhor que nos levou lá tinha três cães, todos pastores alemães como tu. Ele quis mostrá-los. Estavam enfiados na bagageira de um carro, de orelhas enfiadas numa espécie de moldes para não quebrar as frágeis cartilagens das orelhas. Lembras-te como eles se atiraram a ti raivosos? Odiei aqueles cães! Tu permaneceste impassível, muito atento, mostrando as tuas boas intenções, mas em estado de alerta... foste de uma nobreza notável, só muito raramente presenciada em muito poucos cães. Um verdadeiro príncipe dos cães! Sim, porque a nobreza não está na genealogia, mas na alma. E mostraste-a sempre que precisaste dela. E se tu tinhas uma árvore genealógica importante! Descendias de verdadeiros campeões! Mas nunca fizeste alarde de tal proeza! Não precisavas. Tu sabias o que valias... aliás, sempre soubeste, não foi? Melhor do que qualquer olho humano mais inexperiente em conhecimentos caninos... Amo-te! Amar-te-ei até ao fim dos meus dias e depois também!

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publicado por fatimanascimento às 02:08
Terça-feira, 28 de Novembro de 2006
muitos anos atrás, eu vivi numa pequena localidade, onde o espaço, o ar puro e a alegria não faltavam. Todo o meu imaginário está ligado àquela terra, especialmente à zona alta da mesma, onde vivi enquanto ali permaneci. Toda a vizinhança se conhecia, todos se falavam e viviam uma existência alegre e despreocupada. Foi neste clima que vivi a minha infância, junto aos meus vizinhos e companheiros de brincadeiras (o Majó, a Paula Tavares, o primo desta, o Carlos Manuel, também conhecido por "Vences", a Paula Saraiva, a Isabel Matos, o Paulo Paulino, o João Pedro Santos, o Cruz, O Zé Carlos... e o Kimba, o nosso cão de raça indefinida, de cauda muito curta, todo negro à excepção da sua mancha branca do pescoço, que fazia lembrar uma gravata.
Adoptámos o cão, dávamos-lhe de comer e... foi o amigo mais fiel que se possa imaginar! Diria mesmo devotado! Acompanhava-nos em todas as brincadeiras malucas que inventávamos. Mais tarde, quando fomos para escola e, depois, para o ciclo, ele acompanhava-nos durante os cerca de 2 km de trajecto, esperava por nós e acompanhava-nos no regresso a casa. Quantas vezes saímos do recinto da escola para o ir defender de miúdos que o agrediam...a ele que adorava miúdos! A imagem dele acompanha-me sempre protegendo-me como sempre fez... foi o único amigo que nunca me defraudou! Quando chegámos à juventude, já não queríamos que ele nos acompanhasse, então, ele virou-se para geração seguinte, acompanhando-a tal como fizera connosco... com a mesma devoção! Quando nos juntávamos, a geração a seguir à nossa fazia questão em nos seguir, e quando nos separávamos, ele percorria a sua indecisão no espaço que separava os dois grupos – o dos mais velhos e o dos mais novos. Quantas vezes ele não se sentiu dividido entre nós e a nova geração? Se nós tivemos sorte nalguma coisa foi, sem dúvida, no espaço que circundava as nossas casas. Do lado da porta da cozinha, para lá dos muros do meu quintal, da ruela em terra batida e semeada de pedras brancas, e de um espaço amplo, coberto de erva que cercava o poço, havia um olival, com algumas figueiras à mistura. Ao lado do prédio onde eu vivia, para lá do carreiro largo, cheio de poças largas e fundas, havia outro olival que acompanhava este carreiro até ao final do mesmo, igualmente salpicado de figueiras de figos pretos e verdes, ao fundo deste, do lado esquerdo, iniciava-se outro carreiro que nós chamávamos “Carreiro das Cobras”, que confinava com as marcas das quintas que ali existiam (e existem!). Este ligava a uma estrada larga de duas faixas, por nós conhecido como auto-estrada, que limitava o olival a oeste. Junto das bermas da “auto-estrada” encontravam-se as bombas da sonap (hoje propriedade da Galp) e o café, que ainda hoje existe, embora modificado. Eram agradáveis os passeios no verão até lá, embora não precisássemos de ir tão longe… Lembro-me com saudade, do mês de Junho e dos santos populares, altura em que os irmãos mais velhos dos meus amigos de infância iam apanhar lenha, rosmaninho,… para fazer a fogueira que acendiam na noite em que se festejava o dia dedicado a cada santo. Como nós ansiávamos por essa ocasião! Lembro-me de saltar de mãos dadas com os meus amigos de infância ( a Dulce, o Fernando e a Alicinha) atravessando as altas labaredas coloridas e perfumadas… sinto ainda a excitação provocada pelo medo e como apertávamos as mãos uns dos outros e como nos lançávamos através da cortina de fogo e da satisfação por termos conseguido ultrapassar aquela barreira! As vozes dos pais gritando conselhos e supervisionando os nossos saltos. Lembro-me da música que nós ouvíamos naquela década de setenta e que ainda hoje ouço e que me trazem recordações adormecidas há muito. Lembro-me da capela do largo de Santo António, cuja capela tinha o mesmo nome, uma das mais belas que eu já conheci, e onde me gostaria ter casado um dia… conheci os cantos àquela capela, mesmo os recantos que outros nunca chegaram, nem chegarão, a ver. A parte frontal do meu prédio ficava virado para o largo e a capela, do lado direito do mesmo, marcava o início do olival… Lembro-me da festas de Santo António, das marchas, da procissão, a chegada e venda das fogaças… Era uma semana durante a qual os cheiros se misturavam com a música e as luzes… Nas traseiras da minha casa, alheados a toda a confusão, os pirilampos passeavam as suas luzes esverdeadas e intermitentes. Cansados do reboliço da festa, refugiávamo-nos naquele mundo feérico, observando e brincando com aqueles seres tão luminosos. Pouco a pouco, esse espaço desapareceu, foram cortando as árvores, construindo moradias e prédios e, hoje, o Bairro de Santo António, quase irreconhecível, bate-se contra o atrofiamento em que o deixaram…


publicado por fatimanascimento às 08:45
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