Terça-feira, 01 de Dezembro de 2009

 

Recordo-a com uma nitidez que assusta, é como se eu nunca tivesse saído de lá. As manhãs acordavam invariavelmente frias e húmidas, assim como as noites, só as tardes eram quentes e aprazíveis. A costa acordava invariavelmente imersa num nevoeiro branco, denso e agreste que cobria tudo. Acordava cedo, com o barulho das ondas a desfazerem-se na praia, o cheiro a maresia a insinuar-se nas narinas e a aragem fria penetrando pela janela quadriculada de guilhotina. A construção frágil tinha uma decoração simples a condizer: dois quartos de casal, um de duas camas, uma casa-de-banho, a cozinha e o hall de entrada situado atrás da meia parede branca desta última. Ali, havia uma cama de ferro de corpo e meio igual ao quarto de duas camas destinado sempre aos miúdos. Muitas vezes ficámos sozinhos mas outras tínhamos a companhia de outro casal com uma filha. A porta, virada aos pés da cama, era atravessada pela luz crua e fria da madrugada. Dela podia ver-se a segunda fila de casas amarelas que ladeava a rua principal e, depois dela, as outras duas desenhavam-se mais ao longe. Da outra porta da cozinha, virada a oeste, avistavam-se as dunas brancas de areia fina e macia, que se estendiam até à praia; todas elas cobertas de vegetação rasteira e fina, e de outra de folha mais larga e recortada de picos, e as camarinheiras mostrando o seu fruto branco, arredondado, minúsculo e amargo, ondulando mansamente ao vento fraco e fresco de Setembro saturado de maresia. Do lado oposto do bairro, a elevada ondulação de areal, alisada pelo vento caprichoso, sustentando as raízes dos altos e esguios pinheiros bravos. As ruas desenhavam uma elipse à volta das quatro filas do bairro, cortada ao meio por outra mais larga, ao fundo da qual estava o café-mercearia. A norte, o bairro era limitado pelo leito do rio preparando-se para desaguar nas salgadas águas do oceano, mais à frente, junto das rochas negras e rugosas, que ornamentavam ambas as margens do rio, junto do estreito estuário do rio. Todo o leito estava emparedado por rochas geometricamente talhadas e dispostas disciplinadamente umas em cima das outras, que impediam as águas de sair das suas margens naturais. Do outro lado, recomeçava o areal fino rigorosamente vigiado pelo exército de altos pinheiros. Era precisamente o rio que demarcava a fronteira territorial das duas localidades vizinhas confinadas a norte. A sul, para lá das dunas planas, semelhantes a um deserto branco, que se estendiam por breves quilómetros, as primeiras casas, aninhadas atrás da grande duna que as separava da praia, belas vivendas de veraneantes assíduos, distribuídas por ruas paralelas, cortadas por outras filas de casas e ruas que se encaminhavam para a beira-mar. Estas dunas eram limitadas a leste pelos muros da escola primária e pela fila de casas que ladeavam a única estrada que ligava o bairro à aldeia de pescadores. Da aldeia de pescadores, cujas casas e ruas estavam perpendicularmente dispostas, destacava-se a igreja, junto à entrada da localidade, toda construída de altas tiras de madeira escura envernizada, e cujo campanário se erguia acima de todas as outras construções mais próximas, estas mais baixas e modestas. Em momentos de mau tempo, várias pequenas figuras delgadas, escuras e esvoaçantes corriam em direcção a ela, vindas de várias pontos da aldeia, ao toque do sino, deixando cair atrás delas pedaços de gemidos, gritos e orações começadas à pressa e em aflição. As mais novas corriam à praia e outras aos rochedos de onde perscrutavam ansiosamente o horizonte, à luz dos relâmpagos, à procura daqueles compridos, coloridos e altos barcos a remos que tinham partido ainda de madrugada e ainda não haviam voltado da faina. As vozes entrecortadas pela aflição, dirigiam preces ao céu cinzento abafadas pelo vento e o barulho da cortina de bátegas grossas desfazendo-se nos rochedos. As mãos, de dedos fortemente cruzados, faziam eco surdo daquelas soluçantes vozes. Manchas mirradas e escuras engrossavam o magro grupo, nas lamentações e nas preces, estas mais baixas, graves e cheias de fé, das quais se destacavam os gritos agudos das vozes mais jovens, temendo o pior… Algumas, já quase desfalecidas, deixavam-se conduzir pelos braços da razão, virando sempre o rosto na direcção do mar, numa esperança que se despedaçava contra aquele horizonte negros. Lentamente, a praia foi-se esvaziando, despedindo os gritos e as preces em todas as direcções. Dos rochedos, lutando contra o desespero e a angústia, apenas iluminada luzes rápidas dos relâmpagos, uma mancha dobrada sobre si mesma, resistia à intempérie. Subitamente, um grito lancinante libertou-se e atirou-se contra a fúria da natureza, rasgando tudo à sua volta, abrindo caminho até ao céu carregado. Mas nem sempre era assim, naquela pequena comunidade, onde toda a gente se conhecia, se ajudava. O casamento, os baptizados e as demonstrações de fé eram momentos de alegria onde toda a gente participava. Depois, a busca por uma melhor vida, levou os filhos daquela terra a procurarem um meio de vida melhor e mais seguro, e, os que não partiram em busca de terras desconhecidas, procuraram outros empregos em cidades próximas, mas, a pesca está-lhes na veias e eles, nas férias, feriados e dias livres reúnem-se, pela manhã, pegam nos barcos de seus pais, ou noutros já construídos por eles, e entram pelo mar dentro, estendendo a rede cujo traço é desenhado pelas bóias à superfície. Ao fim da tarde, a faina repete-se, e, embora já não se faça por necessidade, ela faz-se sobretudo pelo amor ao mar gosto e aos ensinamentos que pais e avós lhes transmitiram e que eles querem preservar transmitindo-os aos filhos… A paisagem também se transformou, e os prédios altos, substituiram as vivendas e invadiram as dunas, destruindo toda a beleza natural e a alma daquela localidade.

 



publicado por fatimanascimento às 18:50
Segunda-feira, 08 de Dezembro de 2008
A véspera estava ensolarada. Nada indicava essa importante época. Só o começo do Inverno se fizera notar, evidenciando noites vaidosas, que cedo começavam a estender seu manto bordado de estrelas brancas e frias, entregando a terra nas mãos escuras da sorte, que desciam altivas e distantes. Os dias, embora mais pequenos, anunciavam-se sempre alegres e brilhantes, aquecendo a alma das crianças que brincavam no largo. Os gritos estafados, lançados aos raios quentes da manhã, abrigados da aragem fria pelas esquinas dos prédios de dois andares, corriam atrás da bola e subiam ao céu na sua graça infinita, filtrando-se pelo ar e perdendo-se no velho eco dos tempos. Em casa, os almoços preparavam-se na paciente espera do chefe de família, que subia os íngremes caminhos, que sempre mantinham afastados até os grupos mais audazes. No ar, o apito agudo da fábrica, elevou-se até ao cimo da colina preenchendo cada recanto. No olival, os ramos assustados chicoteavam o ar violentamente. A capela, adormecida aos longos e quentes raios solares, que se deixava embalar suavemente pelos gritos dos empenhados jovens jogadores, acordou sobressaltada. A tarde refugiou-se em casa, procurando nas janelas algum sinal de Natal, nessa tarde tão despida. Ocasionalmente, uma silhueta deslizava, discreta, na sombra dos prédios, carregada de embrulhos coloridos. No canto da sala, repousava a pequena árvore sonolenta, toda decorada com velhas e gastas decorações geométricas de papel dourado e prateado. Ocasionalmente, encontrava-se, aqui e ali, alguns envergonhados e tímidos bonecos que olhavam o vazio das horas. O presépio, protegido pelos ramos artificiais da pequena árvore, alongava-se na narração mais bela da antiga e preciosa história, perdendo-se em cada rico detalhe ilustrativo. Só no final da tarde, com a chegada a casa, depois de um dia de trabalho, as pessoas preenchiam o vazio do silêncio das casas, devolvendo-lhes a vida já esquecida. Sons de passos subindo e descendo escadas precipitadamente ecoavam por todo o prédio. Cumprimentos, trocas de vozes irradiando simpatia e calor, davam um especial toque mágico ao fim de tarde frio e escuro, dando-lhe um calor humano especial que iluminava até o canto mais negro da casa. Tudo parecia irradiar luz.
O ruído da porta alertou-me para a chegada do meu pai. Trouxera bacalhau e couve portuguesa para a consoada, passada, como sempre, no aconchego do lar, a três. Preparou tudo, enquanto eu espreitava a programação dos dois canais, sempre especial nessa altura do ano, irradiando, também ela, uma luz muito especial. O meu pai juntou-se a mim, no sofá grande. A minha mãe chegava sempre pouco depois. Dispôs-se a fazer os tradicionais fritos, depois do esforço das limpezas, nas casas habituais casas alheias. A cozinha, já com os ingredientes de molho, à espera da consoada, sempre tardia, foi deixada ao cuidado da matriarca. Cansou-se depressa da solidão. Arrumou o resto da massa, trouxe o pequeno radiador de duas resistências, e um cobertor que colocámos sobre as pernas. Em silêncio, dedicámo-nos àquela programação. Chegada a hora da consoada, o meu pai punha a panela ao lume, metendo dentro dela todos os componentes, enquanto a minha mãe punha a mesa, na sala de jantar, com a bonita loiça de tom verde seco, guardada para ocasiões especiais. Os fritos eram a sobremesa, depois da fruta. Ouvíamos a missa do galo, presidida pelo cardeal Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, e chegava a hora do menino Jesus nascer e descer dos céus distantes, para colocar presentes nos sapatinhos dos meninos, que esperavam ansiosamente na chaminé. Era sempre uma surpresa total. Nunca fazia a menor ideia do que o menino Jesus iria trazer. Umas vezes ficava mais satisfeita, outras menos. Mas sempre tinha lá uma lembrança, o que significava que ele nunca se esquecia de mim. Apesar de pobrezinho, ele conseguia sempre marcar a sua presença. A noite terminava com ida para a cama, onde, pouco depois, mergulhava em risonhos sonhos de luz e cor.


publicado por fatimanascimento às 14:12
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