Terça-feira, 30 de Dezembro de 2008
Uma tarde soalheira e quente, quando o espaço natural ainda não havia sido totalmente invadido pelos prédios e vivendas, nós, os miúdos costumávamos aproveitar os espaços ainda livres, e que eram poucos, resolvemos caçar gafanhotos. Estes existiam ainda em grande quantidade. Os tamanhos variavam assim como a pintura que se encontrava na sua pele. Corríamos livremente pelo espaço ainda aberto, através das ervas já transformadas em palha seca, impelindo-os saltar. Sabendo a localização deles, bastava-nos seguir a sua trajectória para os apanharmos. Cautelosamente, pegávamos-lhes pelas asas e comparávamo-los entre eles. Os mais pequenos não eram uns bichos bonitos, todos castanhos-claros, quase da cor da erva seca, na maioria deles, nem achávamos nada de interessante para descobrir, e quem vira um, vira todos, concluímos. Umas pernas compridas, um focinho alongado, com dois olhos escuros no topo, de cada lado. Um dos meus amigos de infância teve então a ideia de apanhar só os maiores, em minoria, mas mais interessantes. Começou então a caça aos maiores. Perdíamo-nos no meio das ervas altas, na procura desses tão ambicionados animais, mais corpulentos do que os outros, mas também mais interessantes. O Majó mostrara-nos um, pelo que sabíamos perfeitamente o que deveríamos procurar. Estes tinham uma particularidade – voavam! Iniciou-se a caça ao gafanhoto voador! Eram mais difíceis de apanhar, e originavam as cenas mais cómicas, que nos faziam rir perdidamente. Eram precisamente estas cenas, mais do que o interesse pelos pobres animais, que nos dava alento à continuada busca. Eu cheguei a apanhar alguns. Agarrava-os pelas gigantes pernas elegantemente dobradas em forma de V invertido, que pousavam delicadamente no chão. Era assim que os mantínhamos, enquanto os contemplávamos com curiosidade e os comparávamos entre nós. Os rapazes eram os que mais paciência e sorte tinham com os maiores. Chegavam ao pé de nós, com os animais presos entre os dedos polegar e indicador, exibindo-os como troféu, e colocando-os ao pé dos nossos notoriamente mais pequenos. A incessante busca acabaria com a queixa de uma vizinha nossa, que acusava o último gafanhoto de a ter mordido. Entreolhámo-nos espantados. Era a primeira vez que ouvíamos tal queixa. Ela tinha dado meia volta, apoiando a mão direita na esquerda, exibindo um minúsculo traço negro duvidoso. Estaria ela certa do que dizia?, interrogávamo-nos, indecisos. Nunca provámos tal teoria, uma vez que nunca fizemos como ela: fechar o gafanhoto numa prisão escura formada pelas mãos. Nem nunca o faríamos. Sabíamos perfeitamente que não era assim que se procedia! Ainda hoje nos questionamos se não teria sido pretexto dela para pôr fim a uma brincadeira que a aborrecia já, ou se não se teria magoado nalguma erva manhosa, ao tentar apanhá-lo.


publicado por fatimanascimento às 04:40
Quinta-feira, 11 de Dezembro de 2008
Elas percorriam os muros do meu quintal. Deitavam-se ao sol quente da tarde, e ali permaneciam sem que ninguém as incomodasse. Faziam parte da paisagem. Se alguém se aproximasse, elas desapareciam numa corrida vertiginosa, descendo os muros rumo a destinos desconhecidos, escondidos nos buracos dos velhos muros rachados. A atrapalhação acontecia quando nos cruzávamos, em sentido contrário, em cima do muro, quando me resolvia a treinar o meu equilíbrio em cima deles. Adorava percorrer aqueles muros, de braços abertos, parando nos cantos, onde descansava ambos os pés, ao lado um do outro, ligeiramente afastados. Sempre que nos cruzávamos ou eu ou elas desistíamos dos nossos propósitos: eu saltava, sempre que as via, e elas desapareciam, sempre que me viam. Respeitávamos o espaço umas das outras. Nada de interferências. Mesmo quando nos havíamos já habituado à presença umas das outras, o respeito continuava. A vida decorria sem sobressaltos para ambas as partes. Até que um dia, um vizinho meu, que vivia numa vivenda ao lado do meu prédio, só separada por um muro que galgávamos com facilidade, sempre que não nos apetecia dar a volta e abrir o portão, resolveu inventar uma nova diversão: a caça às lagartixas. Nunca tal me passara pela cabeça, mas ele pensava que os muros do meu quintal tinham excesso de população réptil. Apesar de familiarizada com a presença delas, eu não nutria um especial carinho por aquele tipo de animais. Nunca me haviam feito mal, pelo que não me preocupava com elas. Depois, não se conhecia nenhum risco especial derivado da sua presença, ao contrário do que acontecia com as suas primas osgas.
Apresentou-se então o meu vizinho, uma tarde, com uma redonda e achatada caixa metálica, antes cheia com graxa dos sapatos, e que serviria de prisão às cativas lagartixas. Curiosas, eu e as restantes vizinhas do bairro, observávamos o exímio exercício. Ele abria a caixa, com a tampa e a base formando um ângulo agudo, nós fazíamos grande algazarra, e o bicho, completamente aterrado, procurava fugir, tentando bater em retirada, e sem poder devido ao cerco a que fora submetida. Era então que ele avançava com a caixa, devagar, com a tampa já mais descaída, para que elas vissem sombra, e se enfiassem nela. Conseguiu aquela proeza inúmeras vezes, devolvendo-as, depois, ao seu habitat. Mas, um dia, o exercício não correu muito bem, e a lagartixa, devido à precipitação do meu jovem vizinho, ficara com a cauda entalada. Ele tentou abrir a caixa devagar, para não a magoar, mas era demasiado tarde – estava cortada! O pobre bicho regressou ao seu esconderijo natural sem ela. A partir dessa tarde, sempre a diferenciámos facilmente das outras, pela pior razão. Impressionados com o resultado trágico, nunca mais voltámos a brincar de forma tão cruel.


publicado por fatimanascimento às 06:41
Segunda-feira, 21 de Abril de 2008
(Ao meu avô materno, João do Nascimento, pela pessoa que foi…)


As ruas estreitas calavam os gritos. Não se percebia bem se seriam gritos ou grunhidos ou latidos ou uivos, e, após alguns anos, os habitantes ainda não conseguiam distinguir os ruídos de forma a identificá-los. Já se haviam habituado aos sons estranhos que transpiravam das grossas paredes de pedra e da janela comprida e estreita, de vidros sujos, e enferrujadas grades, três ao todo, encavalitada num dos lados, e ao cimo da parede do rés-do-chão do pequeno solar. Do lado oposto, outra janela igual decorava a mesma parede. Ao centro, uma porta alta e estreita, de madeira sólida, escondia o mistério. Ninguém sabia ao certo o que se passava dentro daquelas paredes. Os gritos acompanhavam os aldeãos pela rua fora quando, de enxada ao ombro, ao romper do dia, se dirigiam aos seus terrenos e, depois, no regresso. Mas nem sempre os estranhos ruídos se faziam ouvir, como se a calma se devesse ao cansaço e ao sono de quem os produzia. O que eles mais estranhavam e comentavam entre si, ao princípio, era os ruídos humanos que se adivinhavam por trás daqueles sons indistintos. As crianças, que desciam a rua, pela mão das mães, olhavam receosas aquela janela, enquanto escutavam os ruídos de palha remexida e os longos lamentos. As mães sorriam-lhes tranquilizadoras e eles, passado algum tempo, já se habituavam aos estranhos ruídos. Os rapazes mais turbulentos, olhavam com aparente destemor aquela janela, chegando a aproximar-se da inatingível janela, como que desafiando o perigo escondido. Alguns faziam até apostas entre si, para ver quem conseguia aproximar-se mais dela. Alguns chegavam mesmo a perder os preciosos haveres em tais aventuras, regressando para reclamarem, vitoriosos, o seu prémio. Mais tarde, aprendiam a respeitar aquele que haviam considerado, um dia, uma ameaça, e deixariam de dar importância. Nunca ninguém vira o autor de tais gritos. A porta só havia sido transposta por um caçador muito conhecido na aldeia e que, aparentemente, e dadas as horas das visitas, parecia tratar daquele ser desconhecido. Só ele, para além da família, conhecia o mistério escondido na loja daquela casa. Todas as manhãs e, nos finais de tarde, a figura alta, esguia e ágil do caçador, muito conhecido e respeitado na aldeia, para onde fora viver, após o casamento. A sua estatura, o franco rosto estreito e longo, os inteligentes olhos encovados e pequenos, a sua natureza simples e aberta, valera-lhe a amizade daquela gente simples. Nunca lhe perguntaram o que se passava por trás daquelas paredes, mas também sabiam que ele jamais responderia. Nem mesmo a mulher e os filhos viriam a conhecer o segredo. Fora convidado pelo dono do pequeno solar, e, a partir dali, nunca falhara um só dia a sua tarefa. O efeito que tinha sobre a criatura era espantoso. Dir-se-ia que os dois se entendiam para além das palavras.
Ora, uma tarde, a filha mais velha do caçador, passava na rua, junto do muro oposto à casa, quando ouviu uns ruídos mais acentuados. Dir-se-ia que a criatura estava mais agitada do que de costume e os longos lamentos pareciam querer deitar abaixo as paredes que o prendiam.
- O que se passa? - pensou para si a pequena, estremecendo, enquanto deitava um olhar furtivo e amedrontado à janela, como se tivesse medo que a criatura fugisse por ali, a qualquer momento e tivesse de o enfrentar. – O pai já teria visitado aquele ser solitário? Àquela hora já era costume. Então porquê tamanha agitação? E porquê aquele profundo e longo lamento que cortava a alma?
De repente, deu um salto. Uma mão, de dedos esguios, intensamente peluda, em tudo semelhante à de um humano, acabava de estilhaçar o vidro e agarrava a grade do meio. Uma testa igualmente peluda, seguida de um cabelo que mais se assemelhava à continuação do pelo da cara, surgiu, por momentos, no pequeno rectângulo. Dulce deixou cair o cesto da fruta que levava no antebraço. As maçãs espalharam-se pelo chão. Ela pareceu não dar por nada. Ficou a olhar estarrecida para aquela janela. Olhou à sua volta. Não se via ninguém. Ela atrasara-se e a noite caía sobre a rua, como se quisesse manter o segredo daquela janela. Ela aproximou-se mais, atraída pela revelação súbita do estranho do mistério. De repente, um par de olhos muito abertos, revelando um atraso mental profundo, e um nariz grosso e saliente pareceram farejá-la. A criatura, alarmada, com a presença inesperada daquela miúda de oito anos, pareceu ficar excitada. Não cessava de saltar, tentando, desesperadamente, manter-se agarrada à grade de forma que pudesse manter a visibilidade. Dulce continuava petrificada a olhar a repentina imagem. Um barulho pareceu acordá-la do seu espanto imobilizante. Uma voz masculina tentava-o acalmar e, pelos ruídos, desviar a atenção do ser da janela. Outras vozes se juntaram à primeira. Até que os gemidos, de quem parecia usar da força para imobilizar o ser, deu lugar a um silêncio ofegante.
Dulce agarrou o cesto, apanhou à pressa as maçãs que estavam mais perto dela, e afastou-se, apressadamente, da janela. Confusa com tudo quanto presenciara, ela correu para casa, subiu os degraus, abriu a porta com violência e estendeu o cesto à mãe, refugiando-se, logo de seguida, no seu quarto. A mãe não lhe fez perguntas. Dulce guardaria, durante muito tempo, aquela imagem na sua memória. Memória essa que perduraria muito para além da morte daquele ser, ignorado da sorte, enquanto viveu.
Na janela, um rosto largo e barbeado, olhava atentamente a rua pela janela. Não se via ninguém. Mais descansado, colocou uma tábua de madeira a tapar o buraco do vidro, por onde a aragem, daquele frio e cinzento entardecer, entrava.
- Ainda bem! – pensou, enquanto se afastava. E, depois, em voz alta, voltando-se para alguém – Temos de mandar arranjar aquele vidro.
E afastou-se, deixando, atrás de si, uma criatura dobrada sobre si própria, embalando-se continuamente, como que reconfortando-se na sua dor. Olhou para trás, antes de fechar a porta. A criatura não abandonara a sua posição. Fechou cuidadosamente a porta, como se tivesse medo de o acordar, e subiu as escadas, rumo à cozinha de onde se desprendia um cheiro agradável a comida.

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 08:50
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