Todas as minhas memórias estão ligadas àquela casa, não me lembro da outra, dos arredores de Lisboa. Empoleirada na zona alta da pequena vila, batida pelos ventos fortes e trovoadas violentas, livre de multidões e de carros... Não é tanto a casa em si, mas o espaço em redor que ficou gravado na minha alma. Da casa, recordo a frescura do ambiente nos dias quentes de verão e o aconchego nos dias chuvosos e frios de inverno. Era um rés-do-chão direito, voltado no sentido este-oeste, que fazia esquina com outro prédio, também de quatro andares e também distribuídos lado a lado. A escada separava os quatro andares desde a porta da entrada, e dela avistavam-se os vasos semeados nos degraus, desde a entrada do prédio até à altura em que se bifurcava e dava acesso aos dois andares superiores, meio imersos na obscuridade como dois satélites laterais. A porta da rua abria-se bloqueando o acesso à minha porta de casa, pelo que, depois de aberta tinha de se fechar ou encostar para entrarmos sem problemas. Quando eram várias pessoas, tinham de fazer uma verdadeira ginástica para encostar a porta, tendo mesmo algumas pessoas de subir alguns degraus para entrar na sala. A minha caixa de correio metálica era a primeira do lado da minha porta. Rasgada na largura da parte superior, ela tinha meia dúzia de curiosos buracos no fundo, também dispostos horizontalmente, e pelos quais se espreitava a possível correspondência. A sala quadrada estava mobilada de forma simples. Os quatro sofás distribuídos pelas quatro paredes, o grande virado para a porta e para a pequena mesa de tampo esverdeado com tira negra à volta, e um protuberante ventre metálico carregado de revistas já antigas, parecia perdida no meio do tapete cor de tijolo. À direita, a janela tapada com uns cortinados brancos compridos e direitos, estavam limitados nos dois lados por outros de tecido grosso colorido, que caíam direitos. Ao meio da casa, havia uma outra, também quadrada, que dava acesso a todas as outras divisões e dependente da iluminação destas. Era nesta divisão que se encontrava a mala oriental que o meu pai trouxe de Macau. Tratava-se de uma arca rectangular e alta, cravejada de pioneses abobadados dispostos de forma artística. Era a arca dos meus sonhos! Quando ela se abria, cheirando fortemenete a cânfora, a minha imaginação voava de encontro a destinos desconhecidos... adorava espreitar os recantos, gavetas, gavetinhas e reentrâncias... a cortina que protegia os fatos muito direitos como militares numa parada... os lenços sedosos... e outras preciosidades orientais como fotografias meio amareladas, tiradas pelo meu pai aquando sua estadia de quatro anos e meio em vários pontos daquele pedaço de terra na ponta oriental da China. A olhar para ela embevecida, toda alva, a minha pequena estante com livros que me ofereceram, e, mais tarde, que fui adquirindo com algum dinheiro que me davam ou com a minha magra mesada. Ao meio, uma mesa em forma de barril aberto de três andares onde eu colocava as revistas que queria esconder da inspecção periódica da minha mãe, evitando assim uma lição de moral sobre os desperdícios de dinheiro em revistas de música e uma lição de poupança doméstica em tom despeitado. A sala de jantar, encostada à sala de estar, era a única divisão rectangular com uma mobília castanha clara composta de uma mesa quandragular com alongamento e dois móveis baixos, um deles com uma cristaleira ao centro. Estes dois passavam a vida conferenciando por cima da mesa que lhes tapava teimosamente a vista com uma colorida jarra alta cheia de flores artificiais, que eu detestava mas que faziam um arranjo bonito multicolor. A janela em frente da porta estava coberta com uns cortinados claros e finos limitados nos lados por outros de um azul forte. Era a divisão menos utilizada da casa e estava sempre impecável. A estreita casa de banho rectangular, tinha uma banheira comprida do lado direito da entrada e, ao fundo, a retrete e o bidé, lado a lado, e do lado esquerdo, o lavatório do qual se podia vislumbrar o telhado da garagem através de uma janela pequena com mosqueteiro. O quarto dos meus pais, entre o meu e a casa de banho, tinha duas mesas de cabeceira e uma cama virada com os pés para a janela de portadas interiores de madeira e, do lado direito da porta uma cómoda virada para o guarda-fato no extremo oposto da parede. O meu quarto, era composto de dois divãs encostados a paredes opostas, aproveitando os lados livres deixados pela janela, a cujas extremidades foram colocadas astuciosamente os pés e as cabeceiras de duas camas do quarto de uma vizinha da minha idade que haviam sido desmanchadas e substituídas por outras. Na parede do lado direito da porta, por cima de um dos divãs, uma prateleira que havia acompanhado as cabeceiras e os pés das camas, de onde espreitavam as minhas bonecas em pé ou sentadas. O luar, trespassando as vidraças, embatia em duas portadas de madeira cinzenta interiores. Frente a ela, e encostada à parede oposta do quarto, três malas encavalitadas umas em cima das outras e tapadas por um pano ao jeito de arca, guardavam religiosamente a roupa do corpo, ora da estação quente ora da da fria. A cozinha entalada entre o meu quarto e a despensa, (a única estreita divisão interior), de forma rectangular, tinha pegada à parede oposta à da entrada os armários suspensos da parede e o armário rasteiro das panelas e tachos por baixo da bancada, à esquerda, meio encoberto pelo frigorífico, e o do gás, mais à frente, perto do fogão. Este emploeirado, qual pássaro em seu ramo, em cima de uma bancada de mármore baixa parecia pronto a abrir a asas a todo o momento e a desaparecer chaminé acima... Ao lado deste, a porta que dava para o quintal. À esquerda, o tanque da roupa, em cima de um poleiro de polido de cimento cujo acesso se fazia do primeiro degrau da porta e, em frente, o meu quadrado de terra a que chamávamos quintal, com uma pereira e que era cavado periodicamente pelo meu pai, nas horas vagas, abrindo caça à ervas daninhas que invadiam o quintal. Este quadrado multiplicava-se por quatro estendendo-se todos uns ao lado dos outros. Depois destes, uma garagem encostada à casa de banho da minha casa com uma largo e comprido caminho de acesso. Na outra extremidade, o portão que saltava sempre, evitando assim o ruído desconfortável que fazia sempre que se abria. Do lado oposto dos quintais um outro pequeno que dava para o carreiro de terra cheio de poças sempre abertas pelas chuvas dos invernos e no qual cabia um carro de cada vez... do lado de lá, estendia-se o olival com oliveiras pequenas e acolhedoras onde brinquei muitas vezes às casinhas. Frente aos quintais, e do outro lado da rua do portão grande que dava acesso à garagem um espaço coberto de figueiras e oliveiras que cobriam o terreno livre ao longo do bairro. Antes de lá chegar, o poço, o mistério de um poço que nunca conheceu água, pois nem a da chuva retinha no fundo. O meu prédio, assim como outros das redondezas e as vivendas, devia ter feito parte de um terreno pertencente à capela de Santo António que seria cultivado pela ordem se S. Francisco Xavier e aquele poço, fazia talvez parte desse terreno... Do lado das salas da minha casa, ficava um largo rectangular, cujo lado direito era ocupado pelo terreno daquela igreja, onde hoje ainda se erguem as tendas da festa. A minha vida está muito ligada a esta igreja que eu conheço como as minhas mãos e com a cumplicidade de um casal de velhotes, e antes deles outros, que sempre admiraram a minha paixão por aquela capelinha... Da janela do meu quarto, dominando o resto da paisagem, erguia-se triunfante a serra d'Aire, uma imensa mancha azul que, nos dias mais nostálgicos, eu olhava longamente, imaginando que era um gigante dinossauro há muito adormecido e petrificado...