Segunda-feira, 08 de Dezembro de 2008
A véspera estava ensolarada. Nada indicava essa importante época. Só o começo do Inverno se fizera notar, evidenciando noites vaidosas, que cedo começavam a estender seu manto bordado de estrelas brancas e frias, entregando a terra nas mãos escuras da sorte, que desciam altivas e distantes. Os dias, embora mais pequenos, anunciavam-se sempre alegres e brilhantes, aquecendo a alma das crianças que brincavam no largo. Os gritos estafados, lançados aos raios quentes da manhã, abrigados da aragem fria pelas esquinas dos prédios de dois andares, corriam atrás da bola e subiam ao céu na sua graça infinita, filtrando-se pelo ar e perdendo-se no velho eco dos tempos. Em casa, os almoços preparavam-se na paciente espera do chefe de família, que subia os íngremes caminhos, que sempre mantinham afastados até os grupos mais audazes. No ar, o apito agudo da fábrica, elevou-se até ao cimo da colina preenchendo cada recanto. No olival, os ramos assustados chicoteavam o ar violentamente. A capela, adormecida aos longos e quentes raios solares, que se deixava embalar suavemente pelos gritos dos empenhados jovens jogadores, acordou sobressaltada. A tarde refugiou-se em casa, procurando nas janelas algum sinal de Natal, nessa tarde tão despida. Ocasionalmente, uma silhueta deslizava, discreta, na sombra dos prédios, carregada de embrulhos coloridos. No canto da sala, repousava a pequena árvore sonolenta, toda decorada com velhas e gastas decorações geométricas de papel dourado e prateado. Ocasionalmente, encontrava-se, aqui e ali, alguns envergonhados e tímidos bonecos que olhavam o vazio das horas. O presépio, protegido pelos ramos artificiais da pequena árvore, alongava-se na narração mais bela da antiga e preciosa história, perdendo-se em cada rico detalhe ilustrativo. Só no final da tarde, com a chegada a casa, depois de um dia de trabalho, as pessoas preenchiam o vazio do silêncio das casas, devolvendo-lhes a vida já esquecida. Sons de passos subindo e descendo escadas precipitadamente ecoavam por todo o prédio. Cumprimentos, trocas de vozes irradiando simpatia e calor, davam um especial toque mágico ao fim de tarde frio e escuro, dando-lhe um calor humano especial que iluminava até o canto mais negro da casa. Tudo parecia irradiar luz.
O ruído da porta alertou-me para a chegada do meu pai. Trouxera bacalhau e couve portuguesa para a consoada, passada, como sempre, no aconchego do lar, a três. Preparou tudo, enquanto eu espreitava a programação dos dois canais, sempre especial nessa altura do ano, irradiando, também ela, uma luz muito especial. O meu pai juntou-se a mim, no sofá grande. A minha mãe chegava sempre pouco depois. Dispôs-se a fazer os tradicionais fritos, depois do esforço das limpezas, nas casas habituais casas alheias. A cozinha, já com os ingredientes de molho, à espera da consoada, sempre tardia, foi deixada ao cuidado da matriarca. Cansou-se depressa da solidão. Arrumou o resto da massa, trouxe o pequeno radiador de duas resistências, e um cobertor que colocámos sobre as pernas. Em silêncio, dedicámo-nos àquela programação. Chegada a hora da consoada, o meu pai punha a panela ao lume, metendo dentro dela todos os componentes, enquanto a minha mãe punha a mesa, na sala de jantar, com a bonita loiça de tom verde seco, guardada para ocasiões especiais. Os fritos eram a sobremesa, depois da fruta. Ouvíamos a missa do galo, presidida pelo cardeal Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, e chegava a hora do menino Jesus nascer e descer dos céus distantes, para colocar presentes nos sapatinhos dos meninos, que esperavam ansiosamente na chaminé. Era sempre uma surpresa total. Nunca fazia a menor ideia do que o menino Jesus iria trazer. Umas vezes ficava mais satisfeita, outras menos. Mas sempre tinha lá uma lembrança, o que significava que ele nunca se esquecia de mim. Apesar de pobrezinho, ele conseguia sempre marcar a sua presença. A noite terminava com ida para a cama, onde, pouco depois, mergulhava em risonhos sonhos de luz e cor.


publicado por fatimanascimento às 14:12
Sábado, 03 de Maio de 2008
eregrinação do país – a igreja de Nossa Senhora da Lapa. Esta história vai ser contada pelas minhas palavras, ajudada pela minha memória.
(À minha mãe, pelas histórias que me contava oralmente, quando tinha paciência, e que povoaram parte da minha imaginação…)

Gradiz era uma aldeia pequena, que, com o tempo cresceu, sendo elevada a freguesia, há algum tempo atrás. Ao lado, há uma localidade irmã, a Lapa, da qual esteve separada durante muitos anos, pelos cabeços naturais e, para as populações se deslocarem, tinham de andar muitos quilómetros apanhando a estrada nacional ou atravessar os mesmos. Há alguns anos atrás, a tão desejada estrada foi aberta, ligando, definitivamente, as duas populações. Pertence a esta última a história que vou contar. Esta história, com o tempo, foi-se espalhando, tornando esta localidade mais um dos destinos de peregrinação

O frio era cortante, mas a menina parecia nem parecia senti-lo. Protegida pelo lenço áspero na cabeça, as camisolas de lã sobrepostas, no cimo das quais repousava o xaile escuro, as pernas protegidas pelos saiotes e a saia, juntamente com as meias e as botas, a pequena trabalhava cuidadosamente. No alto da lisa colina rochosa, olhou distraidamente o rebanho que, mansamente, pastava à sua frente, para lá da fogueira, que crepitava alegremente. Tudo em ordem. Em redor, não se via ninguém. Raramente se via alguém, por aquelas bandas. Só alguns caçadores se aventuravam naquelas paragens, com aquele tempo. Voltou a mergulhar a cabeça na sua querida tarefa. Tão concentrada estava, que não deu pelos passos que se aproximavam apressados. Sobressaltou-se com a voz dura e aguda que cortava os tímpanos. Saltou do grosso ramo, que lhe servia de assento, e olhou o rosto vermelho de ar frio, distorcido pela raiva.
- Com que então é assim que passas o teu tempo? – perguntou-lhe a recém chegada, no mesmo tom azedo.
A rapariguinha olhou para o chão, envergonhada. O seu coração batia apressadamente. A mulher olhou para uma das mãos da garota de onde pendia um comprido rolo de trapos coloridos. Dirigiu-se à pequena e arrancou-lhe os trapos das mãos. Olhou para eles atentamente. Os trapos artisticamente ligados uns aos outros. Calculou o tempo que terá levado a fazer. E repetiu furiosamente, virando-se para a filha:
- É assim que passas o teu tempo?
A menina, de olhos baixos, estava petrificada. E, pela primeira vez, parecia tremer, como se fosse, finalmente, o frio se apoderasse dela.
- Quer dizer que em vez de trabalhares, estás a perder tempo com estas porcarias? – tornou na mãe. - Eu já te mostro o que vou fazer com isto. – ameaçou a mãe, dirigindo-se à fogueira.
A menina, adivinhando as intenções da mãe, gritou:
-Tate, mãe. É Nossa Senhora de Lapa! – gritou a menina, aflita.
A mãe retirou às chamas a boneca que ficara com uma mancha escura numa das faces da boneca.
A mãe, ainda confusa, tentou limpar, se sucesso, o sinal deixado pelo lume. Olhou para a filha sem compreender, quando, alarmada, notou que a filha tinha numa das faces, uma réplica exacta daquela que a boneca exibia. Perplexa, a mãe começou a olhar à sua volta notando situações para as quais não tinha explicação: o gado pastava sempre no mesmo sítio e andava gordo, na fogueira ardiam chamas altas, quando nela não havia mais do que brasas e, agora, a cara da filha, para além da voz da filha que ouvia pela primeira vez.


publicado por fatimanascimento às 04:42
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