Quinta-feira, 11 de Junho de 2009

Passeava-se majestosamente no jardim público, arrastando a sua cauda como se de um manto real se tratasse. A pequena cabeça bem erguida no ar, sustentando a nobre e alta coroa de cintilantes safiras e esmeraldas, olhando em frente e para os lados atento nos gestos do grupo infantil disperso pelo seu reino. Observava-as do alto da sua vaidade, incomodado com as correrias e os gritos que cruzavam a sua real e solene caminhada, desviando-se, mesmo a tempo, das mais intrépidas crianças, evitando o choque que desfiguraria a seu majestoso traje colorido. Juntou-se ao restante grupo, numa tentativa solícita de esconder a sua justa inquietação por tão nobre vestuário. Pelo chão, aqui e ali, algumas longas e vistosas penas, acenavam os seus coloridos filamentos à passagem da brisa quente do mês estival, em jeito de cordial saudação. O bando afastou-se, no seu real passo lento, observando a invasão do nobre espaço, com manifesto desagrado, como acontece com os habitantes das pequenas aldeias, quando observam, desalentados, as atitudes dos estouvados veraneantes. O pavão olhou para trás, desconfiado, enquanto seguia os seus colegas. Algumas crianças, nesse momento, haviam trocado de brincadeira, como quem troca uma camisola de manga curta ensopada de suor. Dedicavam-se a apanhar as longas penas abandonadas, exibindo-as na mão à laia de ramo. Havia uma que não tinha e, quando corria para apanhar uma, uma outra parecia ler magicamente os seus pensamentos, antecipando-se-lhe, e erguendo a real pena gasta como um troféu, vangloriava-se a sua proeza. O pavão parou. O resto do seu bando avançou, cautelosamente, lançando olhares inquietantes. Não entendia muito bem aquele jogo. Ele e os seus companheiros dedicavam-se a actividades de lazer mais calmos, dignos da sua já longa posição na alta hierarquia social. A criança continuava a sua desajeitada procura, sempre superada por alguém que, naquele desafiador jogo, estendia a mão ávida à longa pena colorida, para simplesmente bater nas costas de outra mão mais veloz. O pavão lia a frustração no rosto confuso daquela menina que não compreendia a antecipação das suas colegas. Subitamente, do lado do bando registou-se uma agitação. O grupo, sobressaltado, tentava proteger-se das incursões infantis, cujas mãos se estendiam perigosamente na direcção das suas reais caudas. A brincadeira alastrava-se pela pequena multidão como uma súbita febre contagiosa. Os pequenos seres haviam decretado a abertura caça à pena. Procuravam-nas por todo o parque, dispersando-se como setas em todas as direcções. Algumas possuíam uma verdadeira colecção, sob a cumplicidade sorridente dos adultos.

A terra lutava, agora, contra a água fria que teimava invadi-lo com os seus persistentes jactos, lançando ao ar o arrepio do contacto com o seu corpo quente. A terra, indignada, libertava o seu suor quente que se insinuava nas narinas dos humanos.

O pavão não havia abandonado o seu posto de observação. Só um inesperado jacto de água o convenceu a mudar de posição. Não despregava os olhos daquela criança que, alucinada pela teimosia de encontrar uma pena para si, ignorava todos os sinais indicadores do recolher. Olhava insistentemente à sua volta na esperança de levar consigo uma recordação. O pavão não sabia muito bem que atitude esperar daquela face hipnotizada pela ideia. O pavão poderia afirmar que havia, entre aqueles pequenos seres humanos, alguns que se divertiam com aquela infrutífera busca, que eles pareciam, de alguma forma mágica, controlar. Que seres estranhos e cruéis! – pensou o pavão, alarmado com a cena que se desenrolava à sua volta. Até que os seus olhos se cruzaram. Os longos braços adultos agitavam-se no ar reunindo as crianças dispersas. Aquela ficara, ali, parada, olhando-o de forma estranha como se uma ideia lhe tivesse penetrado o espírito. Uma súbita inquietação tomou conta de si, quando a viu, desobedecendo às ordens peremptórias, caminhar na sua direcção. O pavão retomou a sua marcha, com uma estranha sensação, sempre vigilante às atitudes infantis. Ela rodeou-o quando ele já se juntara ao seu grupo. Foi exactamente esse o momento escolhido pelo pérfido desígnio. Enquanto ele olhava alarmado a aproximação daquele valente corpo infantil. Uma mão estendeu-se e uma inexplicavelmente dor aguda invadiu o seu corpo. A escolha do grupo revelara-se inútil. Ela não temera o número do bando. Ele não se conseguira, por falta de espaço, defender-se convenientemente. Ela corria, agora, no sentido contrário com a sua querida longa pena colorida em tons azuis esverdeados, cuja ponta desenhava um enigmático olho semelhante às pinturas faciais de tons carregados exibidas por algumas senhoras. Uma estranha fúria tomou conta de si. Largou a correr desenfreadamente, tanto quanto o seu pesado e majestoso corpo lhe permitia, atrás da pequena figura. Alguns gritos alertaram para a estranha situação. O trabalhador municipal interrompeu a inaudita perseguição, travando os desígnios do enfurecido pavão, enquanto procurava desesperadamente uma explicação para o fenómeno. Esta viria mais tarde na boca de um colega que vira, à saída do parque, as mãos cheias de penas coloridas.

  No caminho de regresso à colónia de férias, a inusitada perseguição não saía de cabeça da pequena. Sozinha, atrás da pequena multidão que se arrastava pelo passeio estreito daquela cidade do sul, tal como o bando que se passeava pelos jardins do parque, ela, atrás, tal como o pobre animal de rica plumagem colorida… tanta semelhança! Eram seres vivos como ela e, por isso mesmo, teriam de ser respeitados. A culpa remoía-lhe o espírito. O troféu da vergonha escondeu-se num caixote do lixo, plantado no caminho. Não sabia se conseguiria voltar àquele parque e encarar o animal. Mas voltou passados alguns dias. O difícil momento chegou. Não se juntou às brincadeiras. Ficou parada a olhar à sua volta. O bando tinha sido prudentemente retirado do contacto com os humanos. Ela aproximou-se da cerca. Os dedos colaram-se à renda de arame. Os olhares cruzaram-se. Neles, a fúria tinha sido substituída por um sentimento de remorso e um pedido mudo de desculpas. Há um mágico e secreto entendimento que ultrapassa, em muito, as palavras e que é comum a todos os seres vivos. O pavão voltou-se para acompanhar a solene marcha do seu grupo. A paz voltou a encher as duas almas, embora não apagasse delas o infeliz episódio.

 



publicado por fatimanascimento às 12:48
Terça-feira, 01 de Julho de 2008
Com a escola primária, chegou a catequese. Era ao final das tardes de Inverno, e lá ia eu, juntamente com as pequenas vizinhas, mais ou menos da minha idade, carregando o pequeno manual rectangular, com maravilhosas imagens coloridas. Era uma hora de viagem intensa aos tempos bíblicos, embalada pela voz simpática da catequista. Era alta e esguia e sempre nos acolhia com um sorriso. No final, todas procurávamos dar-lhe a mão, ao mesmo tempo que descíamos a íngreme escada de madeira gasta, bem seguras ao inseguro corrimão escuro de ferro, do velho e enorme palacete, de três andares rasgados por janelas altas e largas, e todo pintado de branco. A nossa sala era um cubículo do sótão, onde nos esperavam umas cadeiras pequenas, colocadas em círculo. Éramos sempre os últimos a chegar, despedindo, pelo caminho, a imensa e colorida multidão de gaiatos que se dispersava pelos andares, com um breve “Até já! Eu espero-te lá em baixo.” Acumulávamo-nos à porta, a última do pequeno corredor, do lado esquerdo, esperando pacientemente a catequista, algures, perdida na esforçada subida, acompanhando o ritmo lento das outras crianças. Quando chegava, era a alegria, abria-se a porta, acomodávamo-nos e preparávamo-nos para ouvir. A seguir à história, surgiam as questões, à luz trémula da lâmpada, suportada por um débil quadro eléctrico, agarrada no tecto inclinado, que coava o ruído dos pingos de chuva, nas tardes de invernia. A nossa pequena janela inclinava-se para a estreita rua da igreja de S. Pedro, mesmo em frente da central de autocarros da família Clara. Era nesse minúsculo e aconchegante cubículo, que decorriam, cada sábado, ao final da tarde, as nossas lições. Nós amávamos aquele espaço, que explorávamos, sempre que a lição de catequese terminava mais cedo, sob o olhar atento da catequista. Era a parte baixa do cubículo que atraía mais a nossa atenção, para onde nos deslocávamos, com o mínimo de ruído, encolhidas, evitando que as cabeças roçassem as traves de madeira.
Com a chegada a Primavera, anunciou-se a primeira comunhão e a questão do fato, do qual nos foram dadas algumas instruções. O meu era uma simples réplica branca e alugada do traje de noviça. Levei-o para casa, na véspera, onde esperou, pacientemente, pelo grande dia. E este chegou ensolarado e quente. Vesti o imaculado fato, cingido, na cintura, por um cordão branco grosso, e coloquei o véu na cabeça. Nos pés, as meias brancas de renda, apertadas nas sandálias da mesma cor. Parecia uma noviça em miniatura.
No ar, o agradável cheiro a flor de laranjeira entranhava-se nas narinas, abençoando aquele dia importante nas nossas vidas.
Fomos até à igreja, onde nos esperava o senhor padre Búzio, sempre terno connosco, impecavelmente vestido na sua indumentária católica, ricamente decorada. Na igreja cheia, fomos conduzidas aos nossos bancos, sob o olhar atento e simpático do padre, para junto das respectivas catequista. O burburinho que enchia a igreja, traduzia toda a emoção e excitação vividas por nós e pelos nossos familiares. Fiquei no conjunto de bancos laterais, do lado direito, quando se entra na igreja. Os cânticos e a homilia direccionadas para aquela comemoração, encheram-nos de ânimo, evidenciando a importância daquele dia, nas nossas vidas. O momento que mais esperava e receava era o da tomada da hóstia, temendo que, na minha falta de destreza, a pudesse deixar cair ao chão. Abri a pequena boca o mais que pude, e regressei ao meu lugar, de rosto radiante, acompanhada de um dos cânticos que mais amava.
Terminada a celebração, a multidão dispersou-se, em família, para continuar os festejos ao sol daquele agradável dia primaveril. Da minha família, ninguém compareceu. As casas das minhas vizinhas ressoavam a alegria que contrastava com a calma da minha e que eu partilhei, por momentos.
A noite desceu tranquila e, com ela, a necessidade de despir o imaculado hábito alugado. Foi com tristeza que me separei dele e o depositei cuidadosamente em cima da cadeira, sendo arrumado, de seguida, dentro da caixa, para ser entregue no dia seguinte, aos donos. Tive pena de me separar dele.


publicado por fatimanascimento às 11:05
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