Terça-feira, 01 de Julho de 2008
Com a escola primária, chegou a catequese. Era ao final das tardes de Inverno, e lá ia eu, juntamente com as pequenas vizinhas, mais ou menos da minha idade, carregando o pequeno manual rectangular, com maravilhosas imagens coloridas. Era uma hora de viagem intensa aos tempos bíblicos, embalada pela voz simpática da catequista. Era alta e esguia e sempre nos acolhia com um sorriso. No final, todas procurávamos dar-lhe a mão, ao mesmo tempo que descíamos a íngreme escada de madeira gasta, bem seguras ao inseguro corrimão escuro de ferro, do velho e enorme palacete, de três andares rasgados por janelas altas e largas, e todo pintado de branco. A nossa sala era um cubículo do sótão, onde nos esperavam umas cadeiras pequenas, colocadas em círculo. Éramos sempre os últimos a chegar, despedindo, pelo caminho, a imensa e colorida multidão de gaiatos que se dispersava pelos andares, com um breve “Até já! Eu espero-te lá em baixo.” Acumulávamo-nos à porta, a última do pequeno corredor, do lado esquerdo, esperando pacientemente a catequista, algures, perdida na esforçada subida, acompanhando o ritmo lento das outras crianças. Quando chegava, era a alegria, abria-se a porta, acomodávamo-nos e preparávamo-nos para ouvir. A seguir à história, surgiam as questões, à luz trémula da lâmpada, suportada por um débil quadro eléctrico, agarrada no tecto inclinado, que coava o ruído dos pingos de chuva, nas tardes de invernia. A nossa pequena janela inclinava-se para a estreita rua da igreja de S. Pedro, mesmo em frente da central de autocarros da família Clara. Era nesse minúsculo e aconchegante cubículo, que decorriam, cada sábado, ao final da tarde, as nossas lições. Nós amávamos aquele espaço, que explorávamos, sempre que a lição de catequese terminava mais cedo, sob o olhar atento da catequista. Era a parte baixa do cubículo que atraía mais a nossa atenção, para onde nos deslocávamos, com o mínimo de ruído, encolhidas, evitando que as cabeças roçassem as traves de madeira.
Com a chegada a Primavera, anunciou-se a primeira comunhão e a questão do fato, do qual nos foram dadas algumas instruções. O meu era uma simples réplica branca e alugada do traje de noviça. Levei-o para casa, na véspera, onde esperou, pacientemente, pelo grande dia. E este chegou ensolarado e quente. Vesti o imaculado fato, cingido, na cintura, por um cordão branco grosso, e coloquei o véu na cabeça. Nos pés, as meias brancas de renda, apertadas nas sandálias da mesma cor. Parecia uma noviça em miniatura.
No ar, o agradável cheiro a flor de laranjeira entranhava-se nas narinas, abençoando aquele dia importante nas nossas vidas.
Fomos até à igreja, onde nos esperava o senhor padre Búzio, sempre terno connosco, impecavelmente vestido na sua indumentária católica, ricamente decorada. Na igreja cheia, fomos conduzidas aos nossos bancos, sob o olhar atento e simpático do padre, para junto das respectivas catequista. O burburinho que enchia a igreja, traduzia toda a emoção e excitação vividas por nós e pelos nossos familiares. Fiquei no conjunto de bancos laterais, do lado direito, quando se entra na igreja. Os cânticos e a homilia direccionadas para aquela comemoração, encheram-nos de ânimo, evidenciando a importância daquele dia, nas nossas vidas. O momento que mais esperava e receava era o da tomada da hóstia, temendo que, na minha falta de destreza, a pudesse deixar cair ao chão. Abri a pequena boca o mais que pude, e regressei ao meu lugar, de rosto radiante, acompanhada de um dos cânticos que mais amava.
Terminada a celebração, a multidão dispersou-se, em família, para continuar os festejos ao sol daquele agradável dia primaveril. Da minha família, ninguém compareceu. As casas das minhas vizinhas ressoavam a alegria que contrastava com a calma da minha e que eu partilhei, por momentos.
A noite desceu tranquila e, com ela, a necessidade de despir o imaculado hábito alugado. Foi com tristeza que me separei dele e o depositei cuidadosamente em cima da cadeira, sendo arrumado, de seguida, dentro da caixa, para ser entregue no dia seguinte, aos donos. Tive pena de me separar dele.


publicado por fatimanascimento às 11:05
Sábado, 04 de Agosto de 2007
Ter uma filha aos 39 anos foi, para mim, uma bênção inexplicável, em todos os sentidos. Veio numa fase difícil da minha vida, a separação e consequente divórcio, mas trouxe-nos a esperança numa vida nova. Desde que nasceu que ela se tornou o sol do lar, e todos nós, quais planetas, giramos todos um pouco à sua volta. Fez os irmãos crescer, (a irmã mais velha, desde que a mais nova nasceu, deixou de brincar com bonecas) e deu mais estabilidade emocional ao irmão. Para ela, ter dois irmãos mais velhos, trouxe-lhe também os seus benefícios, uma vez que começou a falar e a andar muito cedo, imitando os irmãos e tentando acompanhá-los o mais possível. Depois, a diferença de idades, tem oito anos de diferença da irmã do meio e onze do mais velho, fez com que encontrasse neles o apoio emocional tão necessário aquando das minhas prolongadas ausências por motivos de trabalho. Com a separação, perdi a possibilidade de trabalhar junto de casa e acabei por me deslocar, para cerca de duzentos quilómetros, onde me encontrava efectiva. Chegava na Sexta-feira à noite e partia no Domingo à noite. Lembro-me da alegria sempre que eu entrava em casa dos meus pais, para os levar para nossa casa, durante aquelas horas. Lembro-me da luta que foi para a tentar levar comigo, mas o preço do infantário acabou imperiosamente por ditar as cruéis leis da separação. Os irmãos também ficaram, claro. Pelo menos, durante a minha ausência, ela tinha assim grande parte do seu agregado familiar junto dela, ao fim da tarde. E sempre a protegeram, na medida das suas possibilidades. Foi o ano em que ela começou a dar os primeiros passos. Lembro-me da euforia dos irmãos, que, ao telefone, me contavam os prodígios que ela ia conseguindo fazer, na sua tenra idade. É claro que não aguentei, e tive um esgotamento. A ansiedade, a preocupação, a separação, as viagens, o trabalho... foram uma montanha demasiado difícil de transpor. Depois, a vida serenou, um pouco, com a aproximação de casa e a mudança do local de trabalho, para uma cidade mais próxima, ainda que longe. Foi o ano dos planos de mudança de vida, mas meu filho não se adaptou e tivemos de regressar. Novo concurso. Já com o trabalho quarenta e cinco minutos de casa, a uma velocidade média de oitenta quilómetros, e mesmo neste último ano, em que estive mais perto (mas, infelizmente, não melhor) tínhamos alguns dias da semana em que nos tínhamos de levantar mais cedo e, quando o tempo escasseava, eu pedia-lhe que se vestisse, enquanto lhe preparava a papa matinal. Qual não era o meu espanto, quando, passados alguns minutos a encontrava sentada na cama, toda vestida, lutando fortemente contra o sono, do esforço que fazia por conseguir engolir a papa, quando conseguia... Nesses dias, era a primeira a chegar ao infantário, onde esperava cerca de duas horas pelos outros meninos que, invariavelmente, por volta das nove horas.
De todos os meus filhos é a que mais se parece comigo, quando tinha a idade dela. Os cabelos castanhos claros, os olhos castanhos escuros, com o mesmo círculo de um azul acinzentado à volta da íris, o rosto largo e um corpinho roliço. Desde muito cedo que aprendeu a ser autónoma, e, ainda hoje, há muitos aspectos da vida quotidiana que ela domina largamente. O vocabulário alargado, recheado de palavras abstractas que ela aplica com muita lucidez nas suas conversas, as pequenas responsabilidade que assumiu desde cedo, a sua dádiva emocional aos entes queridos, fizeram dela uma criança muito especial. É uma criança que não precisa de dormir muito e acorda bem disposta, após alguns minutos de sono. É uma criança que ainda agora não cessa de nos surpreender. Um dia destes, desalojou o irmão do messenger, onde já se encontrava há algumas horas, pedindo-lhe que lhe pusesse determinado jogo do miniclip, explicando-lhe onde devia ir, quando o irmão, resistindo aos seus pedidos, se justificava que não sabia, para a despachar.
- É simples, Bruno. Vais ao http://www.miniclip.pt/! - explicava-lhe ela já algo impaciente, de mãozita estendida para o ecrã do monitor.
O irmão acedeu de má vontade, pensando que ela desistiria passados poucos minutos. Mas ela cresce face às dificuldades e passados esses minutos, ainda ela estava frente ao monitor, explorando todas as possibilidades daquele jogo simples. Ele voltou, anunciando que ia brincar, e voltando, desconsolado, as costas ao computador onde a irmã, entusiasmada ainda se debatia. Foi aí que ela não resistiu, respondendo que o acompanharia. Ele voltou-se admirado para mim.
- Mãe, mãe... olha para ali! Ela está a desligar o computador. - alertou-me ele, emocionado. A partir dali, quando um dos irmãos se esquece de desligar o computador, ela faz esse trabalho. Também se parece comigo em muitos aspectos. Sempre que acontecia entrar na Valentim de Carvalho, onde ia frequentemente, ela, ao contrário dos irmãos que passavam o tempo todo à minha volta, como mosquitos à volta da luz no verão, a questionar-me sobre o momento da partida, ela dirigia-se à secção das crianças, pegava num livro e distraía-se vendo as ilustrações, e apontando todas figuras que conhecia dos desenhos animados. Também nunca foi uma criança de exigente, sempre que lhe explicava que não podia, ela, embora, por vezes, muito triste, sempre acatou as minhas decisões e explicações relativas ao não que recebera. De tudo quanto ela tem e que nós amamos muito, há sobretudo o riso espontâneo, muito alegre e solto, resultante das brincadeiras com os irmãos durante os jogos... é uma pequena gigante presença nas nossas vidas.


publicado por fatimanascimento às 23:57
Quarta-feira, 04 de Julho de 2007
Na arca das minhas memórias, muitas se vão perdendo no pó do tempo, asfixiando naquele espaço escuro e exíguo que engloba a infância. O meu tio faz parte desse espaço exíguo que, com a passagem dos anos, vê o seu precioso material desfigurado. É por isso que resolvi falar dele, para que a sua imagem escape à voragem das traças temporais...
O meu tio era o irmão mais velho do meu pai e foi uma pessoa importante na minha vida. Conheci-o sempre assim: uma versão mais baixa e mais forte do meu pai. A sua imagem continua viva na minha memória: a pele do seu rosto largo curtida pelas ceifas ardentes do sol alentejano, os pequenos olhos fundos e sorridentes que exalavam uma inteligência fraterna e aberta, protegidos pelas lentes bifocais, a boca de lábios finos sempre prontos a desenharem o seu característico sorriso espontâneo, a cicatriz que adornava o lábio superior, a voz grossa e agradável que o identificava em todo o lado.
Foi o companheiro de brincadeiras do meu pai, apesar dos três anos e meio que os separava. Possuidor de um grande carisma, ele arrastava o meu pai para as brincadeiras, entreajudando-se sempre nas dificuldades. Unia-os uma amizade muito forte.
Desde pequena que me lembro de ter uma verdadeira loucura por ele. A alegria que emanava todo o seu ser, a boa disposição, a sua bondade e a sua naturalidade franca, faziam dele uma pessoa conhecida e amada na vila, onde trabalhou muitos anos.
Eu conhecia o horário em que o carro do lixo da câmara passava a recolher os resíduos domésticos acumulados nos baldes revestidos de plástico ou de jornais desfolhados, colocados aos portões e recolhidos por homens que os despejavam nas gavetas laterais do camião. À noite ou de manhã, ele lá estava, àquela hora e, quando me descuidava com as horas e ouvia o ronco do motor de arranque, anunciando o início da marcha, lá ia eu a correr atrás do camião. Os colegas dele, que recolhiam o lixo, batiam na enorme lata do camião, chamando a sua atenção para a garotinha que corria e o chamava. Lembro-me da alegria dele, quando me viu, e da sua preocupação, olhando-me nos olhos e explicando-me que era perigoso correr assim atrás do camião. Já não era a primeira vez que tal acontecia. Um dia vira-o, em pleno centro da vila, e arrancara a correr na direcção dos seus braços abertos, deixando uma mãe preocupada aos gritos, enquanto o meu pai tentava serená-la, admoestando-a pelo barulho que fazia no seu local de trabalho. Por várias vezes, eu parei para olhar para trás e fitar a preocupação maternal, retomando sempre a marcha sempre em direcção a ele. Lembro-me de ele me apertar nos seus braços fortes, aconchegando-me à sua alegria contagiante.
Lembro-me também que, um dia, os meus avós paternos tinham ido a nossa casa almoçar, por ocasião dos anos do meu pai, julgo eu, e a minha avó levantara-se da mesa, depois de comer, e perguntara quem lavaria aquela merda. Foi o caos. Ninguém sabia o que dizer! Uma tensão de cortar à faca... o meu pai levou os meus avós de volta a casa...e, no regresso, as culpas cairam em cima dele porque não defendera a minha mãe. O caso foi grave... O meu tio ficara de aparecer mais tarde... e assim fez. Quando chegou, o clima pesado quase não deixava respirar. Mesmo a sua alegria parecia incapaz de cortar o véu carregado que pairava sobre as nossas cabeças. Inteirou-se da situação. Depois de se ter sentado à mesa a convite dos meus pais, ele propôs-nos uma saída até à terra onde morava e que ficava ali perto. Depois de qubrar a resistência dos meus pais, lá fomos todos. Foi a solução correcta.
Saímos. O ar quente de Junho queimava-nos a pele desprotegida, embora o sol do fim da tarde enfraquecesse com a hora avançada. O meu tio fez questão em me levar no carro dele. Pelo caminho, ele falava comigo num tom de voz terno, dizendo que eu não me podia deixar afectar pelos problemas dos dois, que eram mais do que habituais.
Nas frequentes visitas que fazíamos aos meus tios e primos, sempre que íamos a casa dos meus avós (e eram bastantes as vezes!), dávamos a volta e passávamos por casa dos meus tios, para os ver. Numa ocasião, lembro-me dele sentado no topo da mesa rectangular, o seu lugar habitual, voltado para a porta da entrada, os seus sete filhos e a mulher sentados à mesa e o ar alegre e feliz que se respirava naquela casa. Toda a gente falava, ria, trocava impressões... ainda hoje os meus primos são unidos. Ele teve esse mérito, juntamente com a minha tia Beatriz.
As pessoas, hoje já com uma certa idade, e que, quando o conheceram eram ainda gaiatos, recordam-no agora com muita saudade. Falam dele com admiração, pela pessoa que ele era e que o fazia entender as pessoas e as situações. Falam hoje ainda do seu carisma... Também eu agradeço a Deus aoportunidade que me deu de conhecer uma pessoa como ele. De todos os desaparecidos, é dele que o meu pai tem mais saudades... apesar de amar toda a família! Eu, por meu lado, as recordações que tenho, e não são muitas, infelizmente, estão mais ligadas à sua maneira de ser alegre e cativante, tão diferente do irmão, mais introvertido e à maneira como o meu pai e ele se entendiam. O meu pai junto dele era outra pessoa!


publicado por fatimanascimento às 10:17
Quarta-feira, 02 de Maio de 2007
Os meus avós paternos viviam numa casinha empoleirada na parte superior de uma faixa de terreno esguia que ia da estrada principal da aldeia até um carreiro que o limitava na outra ponta. Entrava-se por um desengonçado portão alto de madeira corroída, subindo um carreiro de terra e pedra solta. A casa dormitava à direita e os barracões à esquerda, ambos separados pelo carreiro de acesso que acompanhava o terreno em todo o seu comprimento.
A frente da casa, tapada com umas oliveiras dos olhares indiscretos dos peões, emoldurava a casa enfeitada de flores multicolores, semeadas em canteiros improvisados que davam um aspecto encantador à casa. À saída da porta principal, o pórtico sustentado por duas colunas, com canteiros de muro formando um ângulo recto e acompanhando o traçado do pórtico, eram uma explosão de cores e formas na Primavera. A casa em si não era grande, formada somente por uma sala e três quartos, divididos ao centro por um corredor em linha recta que ligava as quatro portas opostas das divisões. A sala era graciosa, com a mesa de madeira clara ao centro rodeada de quatro cadeiras e um aparador com loiça colorida encostado à parede. Pendurado na parede à esquerda do aparador, o relógio de pêndulo, encerrando em si o mistério do tempo, contava regular e incansavelmente, dia e noite, as horas com um ritmo certo e lento. Da janela, filtravam-se os raios de sol através dos cortinados dos vidros, emprestando às paredes pálidas uma cor quente e suave, dos fins das tardes soalheiras. Em frente à porta da sala, abria-se o quarto ocupado outrora pelo meu então jovem pai, com uma cama e uma mesa de cabeceira antigas e uma foto sua sorrindo doce e calmamente para nós. Ao lado da mesa de cabeceira, e virado na direcção da cama, o guarda-fatos fitava longa e melancolicamente a janela. Era o quarto mais soalheiro e quente da casa, o mais bonito também. Ao lado desse quarto, levantava-se o dos meus avós mais sombrio com uma cama de madeira mais escura, uma mesa de cabeceira com um candeeiro ao centro e uma mesa longa do lado da janela e os indispensáveis bacios meio ocultos debaixo da cama. Em frente do quarto deles, um outro com uma cama de ferro branca tapada com um colchão de camisas de milho e uns cobertores de trapos coloridos, artisticamente ligados uns aos outros, e o fiel bacio de loiça branca espreitando maliciosamente debaixo da cama; encostada à parede do lado esquerdo da porta, uma arca escura que fitava de lado uma longa mesa de madeira escura, encostada à parede, junto à cabeceira da cama. Em frente à janela, um lavatório branco, gasto pelo tempo e o uso, com uma bacia à espera de ser servida pelo seu fiel jarrão repleto de água. Do ferro redondo, junto à bacia, pendia uma toalha branca, exalando um aroma a sabão. Era aí que eu dormia nas poucas vezes que eu lá pernoitava, só mais tarde tive a oportunidade de trocar pelo do meu pai. A porta traseira da casa dava para um pátio coberto de telha colocado numa estrutura de madeira. À direita do pátio, estava a cozinha da casa, um edifício de uma só divisão que encerrava uma chaminé alta, onde se encontrava o fogão de lenha e um poço, à direita dele, sempre cheio de água fresca e límpida. Na parede oposta ao fogão, uma mesa longa com duas gavetas. Dessa parede, por cima da mesa das refeições, a janela esforçava-se por dar claridade àquela divisão única, ajudada pela porta, a seu lado, cujas fitas ondeavam mansamente ao sabor da brisa de verão. Do lado de fora, colado à parede da cozinha, um tanque para dentro do qual corria um grosso jacto de água igualmente límpida e fresca. Seguia-se-lhe um estreito pedaço rectangular de terra dividido em pequenos canteiros semeados de hortaliças variadas. O caminho a todo o comprimento dele, separando-o da casa, estava tapado por uma vinha que servia de tecto natural e improvisado à dita passagem. Do lado contrário, uma romãzeira de tronco torcido, mas de vontade férrea, enchia-se generosamente, todos os anos, de doces e rosadas romãs suculentas. Era um dos sítios onde eu mais gostava de brincar. Frente à cozinha exterior, atravessando o pátio, e acompanhando o comprimento da casa, ficavam os barracões das arrumações. À entrada o dos longos tabuleiros destinados à seca dos figos, também garagem da carroça, quando ainda a havia, logo seguido do armazém dos cereais onde se depositava a farinha e outros cereais nas fundas e longas arcas de madeira escura, o curral da mula e das cabras ou ovelhas, dividida em três partes por cercas: à direita para os animais e, ao longo da parede esquerda, todos os artefactos necessários à carroça e à mula. Depois deste, vinha o barracão onde se encontravam as capoeiras dos coelhos e outros artefactos que não tinham lugar certo para ficar. Era nesta divisão que se encontrava a escada que dava para o forro ocupando o espaço entre as telhas e todo o comprimento do tecto dos barracões agrícolas. Era o único espaço que me estava interdito devido ao perigo de queda da escada. Frente às traseiras da casa, a capoeira das galinhas onde se passeavam também outras aves à mistura e, pegadas a ela, as dos outros coelhos. Para lá das instalações agrupadas à volta da casa, estendia-se o terreno que descia ao encontro de um pedaço de terreno plano, limitado por um regato, para logo subir novamente até à extremidade do mesmo. Grande parte desta faixa esguia estava ocupado por figueiras, oliveiras, uma nespereira gigante onde só o meu pai subia para apanhar nésperas; só a faixa de terreno plana era cultivável mas era indescritível a quantidade de culturas variadas num espaço tão pequeno todo realizado pelo esforço dos braços do meu avô a quem o meu pai ajudava nos tempos livres! Até vinha lá havia! Depois, para lá do regato, repetia-se a mesma paisagem de oliveiras e figueiras até à extremidade. O outro local onde eu me refugiava para brincar era ao pé deste regato que corria alegremente espalhando pelo ar morno das tardes a sua canção harmoniosa. Ali, passava horas enfiada nas minhas brincadeiras infantis que se desfiavam numa torrente imaginativa interminável. Não dava conta do tempo passar... e era um alívio sempre que se demoravam a encontrar-me! Fiquei proibida de utilizar aquele espaço tão querido. Ninguém se queria dar ao trabalho de andar cerca de duzentos metros para me chamar para as refeições!
Muitas das minhas recordações estão ligadas a este espaço, passeio obrigatório nos nossos fins-de-semana, uma vez que o meu pai amava aquele espaço, que lhe trazia a paz de espírito e a força anímica de que tanto necessitava para o seu trabalho.


publicado por fatimanascimento às 02:55
Terça-feira, 13 de Fevereiro de 2007
O meu pai costuma contar histórias da sua adolescência e, muitas delas, relacionadas com o seu pai, por quem ele teve sempre uma forte admiração. Os tempos eram muito difíceis e eles viam-se obrigados a deixar as suas terras e a migrar até à ceifa alentejana, para ganharem mais algum dinheiro. O caminho era longo e feito a pé, em grupos grandes ou pequenos grupos familiares. Foi numa dessas viagens que contavam no itinerário terras como Envendos e Portalegre, que aconteceu a história que vou contar. Da passagem pelos Envendos, ficou a história da troca do presunto pelo toucinho. As pessoas, provavelmente cansadas de comer o presunto que os acompanhava na viagem, trocavam-no nos Envendos por toucinho, com o que nem todas as pessoas do grupo concordavam, embora respeitassem a decisão dos conterrâneos... Em Portalegre, numa dessas expedições ao Alentejo, o meu avô e o meu pai entraram numa tabernazita para comerem algo que fugisse ao farnel constituído por pão seco e presunto empurrados com água e algum vinho por eles transportados. Chegados a Portalegre, costumavam abancar numa tabernazita, à beira da estrada que entra no coração daquela cidade, onde podiam desfrutar de uma comida quante. Ora, qual não foi a angústia do meu avô, depois da refeição, ao verificar que tinha perdido a carteira ou a tinha deixado em casa... o taberneiro, com pena deles, não chamou a guarda, e, em vez disso, deixou-os ir, comprometendo-se o meu avô a pagar no regresso. Claro que o dono do estabelecimento nunca pensou em recuperar o dinheiro daquela refeição! Escusado será dizer que após a ceifa, a primeira preocupação do meu avô foi, assim que entrou em Portalegre, procurar a taberna e pagar a dívida pendente, perante a incredulidade do dono. Volvidos muitos anos, estando eu colocada nessa cidade, levei uma ou duas vezes o meu pai, já entradote, comigo. Ao deparar com a taberna, reconheceu-a e resolveu entrar para ver como estava e quem estava. Como homem sossegado que é, entrou, olhou à sua volta e esperou a sua vez. Enquanto esperava pacientemente, escutou uma história que depressa reconheceu como sendo a sua. Ao escutar o tom de admiração na voz do taberneiro, também ele idoso, o meu pai identificou-se, acrescentando mais alguns detalhes à história. O narrador era o filho do taberneiro que escutara a história da boca do seu pai e que já a contara inúmeras vezes aos seus clientes, e fazía-o, mais uma vez, naquele momento. Os dois homens entreolharam-se e entre eles desprendia-se uma profunda empatia e emoção. Escusado será dizer que o meu pai bebeu e pagou a custo, pois o taberneiro não queria aceitar o dinheiro. Engraçado, o meu avô já falecido ainda se encontrava vivo naquela história, contada vezes sem conta... de facto, os nossos actos imortalizam-nos e, enquanto perdurar a memória dos homens, alguns deles nunca morrerão, só o nome ligado a eles !


publicado por fatimanascimento às 14:40
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