Terça-feira, 01 de Junho de 2010

Eram pequenos, frágeis, envoltos numa macia capa de penugem amarela. Adorava aqueles pequenos seres! Observava-os do lado de fora, por entre a rede de malha larga correndo, em grupo, atrás da altiva mãe que mais parecia um general orgulhoso do seu pequeno exército, sobre as suas frágeis patitas, abrindo ocasionalmente as minúsculas asas para se equilibrarem. Num universo de adultos, aqueles minúsculos animais, que haviam rompido as cascas ovais, com o tenro bico, diante dos meus expectantes e maravilhados olhos, eram os que mais se assemelhavam à minha pequena e rechonchuda estatura. Sempre que acordava, a minha memória voava ao encontro das adoráveis criaturinhas. Uma manhã, não resisti. Entrei na capoeira e agarrei um pinto. A galinha que se mantivera sempre vigilante aos meus actos, tentara fintar-me sempre fielmente seguida pela sua prole, que se mantinha numa formatura tão apertada que mais se assemelhava a um manto amarelo. Peguei num assustado pintainho que se debatia ferozmente na minha pequena mão. Por uma ou duas vezes, quase o deixei a cair, não fosse a minha redobrada atenção! Sentia o seu coração pequenino a bater descompassadamente. Saí com ele aninhado entre a minha mão e o vestidinho de alças. Passeei pelo terreno dos meus avós, acariciando-o sempre para lhe transmitir toda a ternura do meu coração. Passados uns instantes, o animal descansava pacificamente nos meus braços, fechando as pálpebras brancas. À noite, era sempre um tormento separar-me dele. Ficava agarrada à malha tecida de hexágonos, fitando-o de tal forma que parecia querer decorar os detalhes que identificavam o seu corpo tão semelhante ao dos irmãos. Nos dias seguintes, o tormento era semelhante àquele que experimentava com a separação: a minha mãe, conhecendo o descontentamento dos meus avós, proibia-me a entrada no galinheiro. Perseguia-a então com incessantes pedidos. Já aborrecida, entrava contrariada, no galinheiro apanhando o primeiro que encontrava dispondo-se logo a sair com o animalzito a espernear tentando libertar-se das mãos bruscas. Aos meus gritos de protesto, logo largava o pinto para tentar descobrir aquele que eu designava com o dedo e que mudava constantemente de posição dentro da ninhada. Cansada, largou o animal dizendo que fosse eu lá buscá-lo! Ora, se fora mesmo isso que eu sempre quisera…! Entrei precipitadamente na capoeira (não fosse ela mudar de ideias!) e olhei tranquilamente à volta. Com o alvo dentro do campo de visão, curvei-me para a frente de braços estendidos. Falhei. Voltei a tentar. Quase! Voltei à posição inicial. Novo golpe! Conseguira! Levantei-me satisfeita, com o animal a lutar contra as minhas mãos que o sujeitavam desajeitadamente. O seu coração parecia doido! Arrastei-o para aquela que passaria ser a nossa rotina diária. Os adultos tinham desistido dos protestos. À noite, lá voltava o animal para a sua família. Como esta ligação se tornasse muito forte, percebi que, a determinada altura, o animal já se sentia um estranho entre os seus. Esta percepção tornava a separação ainda mais difícil. O animal ficava sozinho, parecendo completamente desamparado. Era como se não o reconhecessem na comunidade! Nova intromissão dos adultos. Não poderia tirá-lo de lá, a não ser em certos dias que eles designariam. O animal tinha de permanecer o mais possível junto dos seus para aprender a ser como eles. Os animais aprendem imitando os seus progenitores. O meu entusiasmo murchou. A saudade da presença daquele frágil animal inofensivo era forte. Via-o passear-se pela capoeira ora acompanhado ora sozinho. Apreciava, orgulhosa, o seu crescimento, embora sempre acompanhada de um medo secreto. Iria ele esquecer-me? Daquele vigoroso corpo franzino cresciam penas coloridas e uma orgulhosa crista. O pânico invadiu-me como uma onda. Estavam a tirar-nos a infância! Já me custava reconhecer, naquele frango, o pintainho que tinha sido. Assaltei a capoeira e apanhei-o, depois de algumas tentativas frustradas. O animal desistiu de se debater, mas aborrecia-se nos meus braços e, como para me lembrar disso mesmo, bicava-me esporadicamente as mãos e os braços ou algumas partes do corpo escondidas debaixo do vestido. Retomava a rotina já sua conhecida, mas o animal já não se divertia tanto e estranhava aquela prisão forçada. Continuava, ao contrário do que esperava, a debater-se incomodado com a pressão dos meus braços, enquanto me observava com a cabeça ligeiramente inclinada. Percebi que não a posição mais indicada para um jovem galo. Tentei outras, mas todas pareciam não encaixar de forma a resultar confortável para ambos. Continuei a retirá-lo sempre do seu ambiente, até perceber, um dia, que já não era só a posição. Havia mais um motivo que o fazia detestar aqueles passeios e ansiar pelo seu regresso à capoeira. Mesmo nos meus braços, a sua cabeça voltava-se insistentemente na direcção da comunidade galinácea, debatendo-se furiosamente contra os meus braços, onde quase já não cabia! Bicava-me furiosamente sempre que me aproximava da capoeira numa fúria de libertação! Escolhi novos itinerários mantendo-me propositadamente afastada daquele local que parecia enlouquecer o frango! Não resultou! Um dia, quando me precipitava para o galinheiro, percebi que se mantinha junto de uma franga! Entrei ainda assim, mas, em vez de ter de lutar contra uma vontade, vi-me confrontada com dois agressores: o frango e a sua companheira! Percebi que encontrara alguém mais importante na sua vida! Saí dividida entre a satisfação e a tristeza da descoberta. Percebera, finalmente, que se iniciara para ele uma nova vida que, para mim, ainda não chegara! Ainda teria de esperar umas boas duas décadas até, finalmente, viver a situação do frango que se transformara rapidamente num belo galo!



publicado por fatimanascimento às 21:50
Sexta-feira, 12 de Setembro de 2008
A minha avó andava aborrecida. O problema era o galinheiro. Havia já algum tempo que eu estranhava a aparência das galinhas: meias despidas de penas e havia uma que andava já meio nua, mostrando a feia pele cheia de altos. No chão daquele rectângulo de rede metálica, havia um colchão de penas. As galinhas metiam dó! Nem no choco elas permaneciam muito tempo, sempre em sobressalto. O problema era um galo que a minha avó se lembrara de comprar, no intuito de aumentar a população galinácea. O efeito produzido fora o contrário: a população não só não aumentara, como apresentava um cenário semelhante ao resultado de uma guerra. A população galinácea andava cabisbaixa, sobressaltada e em estado de alerta permanente. O galo não podia ver as galinhas e salvo uma que lhe fazia frente, embora nitidamente com medo, e apresentando também as sequelas das lutas, todas as outras estavam num estado lastimoso.
- O galo parece que tem o diabo no corpo! – queixava-se a minha avó paterna, olhando o bonito galo que lhe custara os olhos da cara.
Ela andara a namorá-lo durante aquela manhã no mercado. Era um belo espécime: todo emproado, deslocando-se majestosamente no pouco espaço de que dispunha, de alta crista vermelha bem direita no topo da pequena cabeça, e todo vestido de cores bem garridas. A mistura das cores com que se vestia atraía a atenção dos que passavam.
- O melhor é acabar com o problema de uma vez por todas! – aconselhava o meu pai, impressionado com aquela violência e o espectáculo que se descortinava do lado de fora da capoeira. – Aliás, nem sei do que estão à espera.
- Ora, do que havia de estar à espera? Que o teu pai arranje um tempo para o matar! – sentenciou a minha avó, enquanto os seus olhos apaixonados acompanhavam os movimentos do galo que parecia atento à conversa deles, tentando descortinar, através daquela língua estranha, utilizada pelos humanos, sorte que o esperava. Do meu canto, um pouco afastada daquele cenário de conversa, eu observava aquele bicho cujo comportamento era, no mínimo, estranho. Parecia desprender-se dele uma espécie e ódio inteligente, de que só alguns humanos são dotados. Olhando-o mais de perto, e acompanhando aquele ataque, cuja incompreensível fúria se manifestava de tempos a tempos, sempre que uma descuidada e arredia galinha se atrevia a aproximar do recipiente da comida.
Ficou decidido, após um julgamento sumário, a sentença de morte do galo. O meu pai viria ajudar assim que tivesse oportunidade. O meu avô duvidava da sua capacidade para imobilizar aquele animal. Calhou num dia de folga. Fomos todos. Tudo estava a postos e o meu avô, recém-chegado da horta, resolveu que ele daria bem conta do recado. O meu pai, embora desconfiado, limitou-se a deder-lhe o lugar. Ficámos todos, de longe, a assistir ao badalado fim do galo. Malga pronta, faca afiada, pescoço do galo torcido para controlar a força diabólica. O meu avô, debruçado nas pernas sobre o animal, começou a tarefa. A minha avó fugira, voltando as costas à morte do animal querido, mostrando a sua pena com algumas palavras. O meu pai e o meu avô irritaram-se:
- Mas quer ou não o animal morto? – impacientaram-se eles. – Tem é de escolher entre as galinhas e o galo.
- Vá lá! Acabem lá com isso. – pediu ela, ainda impressionada com a ideia de ver desaparecer o vistoso animal.
Assim foi. O sangue do animal começou a escorrer para a alva taça, tingindo-a de vermelho vivo, enquanto o animal estrebuchava. A determinada altura, o animal, em toda a sua força, libertou as asas dos pés do meu avô, (que afrouxara a força com que o segurava), e que exagerara no corte e ficara com a cabeça dele na mão. O mais estranho de tudo, foi vê-lo correr às curvas, e sem cabeça, pelo terreno que circundava os currais. O meu pai e o meu avô precipitaram-se atrás dele, evitando que o almoço fugisse da estreita tira da pequena quinta. Já cansados, desistiram e ficámos todos a assistir à estranha dança do animal sem cabeça. Levou alguns minutos até a força abandonar totalmente aquele estranho e elegante corpo colorido, e cair, finalmente, por terra. Ficámos ainda um pouco parados, chocados com a insólita cena a que acabáramos de assistir. Finalmente, o meu avô pegou no corpo inerte e entregou-o à minha mãe, para que começasse a difícil tarefa de depenar o animal. Falou-se deste acontecimento durante muito tempo, tirando dela as mais diversas conclusões.


publicado por fatimanascimento às 10:54
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