Terça-feira, 01 de Dezembro de 2009

 

Recordo-a com uma nitidez que assusta, é como se eu nunca tivesse saído de lá. As manhãs acordavam invariavelmente frias e húmidas, assim como as noites, só as tardes eram quentes e aprazíveis. A costa acordava invariavelmente imersa num nevoeiro branco, denso e agreste que cobria tudo. Acordava cedo, com o barulho das ondas a desfazerem-se na praia, o cheiro a maresia a insinuar-se nas narinas e a aragem fria penetrando pela janela quadriculada de guilhotina. A construção frágil tinha uma decoração simples a condizer: dois quartos de casal, um de duas camas, uma casa-de-banho, a cozinha e o hall de entrada situado atrás da meia parede branca desta última. Ali, havia uma cama de ferro de corpo e meio igual ao quarto de duas camas destinado sempre aos miúdos. Muitas vezes ficámos sozinhos mas outras tínhamos a companhia de outro casal com uma filha. A porta, virada aos pés da cama, era atravessada pela luz crua e fria da madrugada. Dela podia ver-se a segunda fila de casas amarelas que ladeava a rua principal e, depois dela, as outras duas desenhavam-se mais ao longe. Da outra porta da cozinha, virada a oeste, avistavam-se as dunas brancas de areia fina e macia, que se estendiam até à praia; todas elas cobertas de vegetação rasteira e fina, e de outra de folha mais larga e recortada de picos, e as camarinheiras mostrando o seu fruto branco, arredondado, minúsculo e amargo, ondulando mansamente ao vento fraco e fresco de Setembro saturado de maresia. Do lado oposto do bairro, a elevada ondulação de areal, alisada pelo vento caprichoso, sustentando as raízes dos altos e esguios pinheiros bravos. As ruas desenhavam uma elipse à volta das quatro filas do bairro, cortada ao meio por outra mais larga, ao fundo da qual estava o café-mercearia. A norte, o bairro era limitado pelo leito do rio preparando-se para desaguar nas salgadas águas do oceano, mais à frente, junto das rochas negras e rugosas, que ornamentavam ambas as margens do rio, junto do estreito estuário do rio. Todo o leito estava emparedado por rochas geometricamente talhadas e dispostas disciplinadamente umas em cima das outras, que impediam as águas de sair das suas margens naturais. Do outro lado, recomeçava o areal fino rigorosamente vigiado pelo exército de altos pinheiros. Era precisamente o rio que demarcava a fronteira territorial das duas localidades vizinhas confinadas a norte. A sul, para lá das dunas planas, semelhantes a um deserto branco, que se estendiam por breves quilómetros, as primeiras casas, aninhadas atrás da grande duna que as separava da praia, belas vivendas de veraneantes assíduos, distribuídas por ruas paralelas, cortadas por outras filas de casas e ruas que se encaminhavam para a beira-mar. Estas dunas eram limitadas a leste pelos muros da escola primária e pela fila de casas que ladeavam a única estrada que ligava o bairro à aldeia de pescadores. Da aldeia de pescadores, cujas casas e ruas estavam perpendicularmente dispostas, destacava-se a igreja, junto à entrada da localidade, toda construída de altas tiras de madeira escura envernizada, e cujo campanário se erguia acima de todas as outras construções mais próximas, estas mais baixas e modestas. Em momentos de mau tempo, várias pequenas figuras delgadas, escuras e esvoaçantes corriam em direcção a ela, vindas de várias pontos da aldeia, ao toque do sino, deixando cair atrás delas pedaços de gemidos, gritos e orações começadas à pressa e em aflição. As mais novas corriam à praia e outras aos rochedos de onde perscrutavam ansiosamente o horizonte, à luz dos relâmpagos, à procura daqueles compridos, coloridos e altos barcos a remos que tinham partido ainda de madrugada e ainda não haviam voltado da faina. As vozes entrecortadas pela aflição, dirigiam preces ao céu cinzento abafadas pelo vento e o barulho da cortina de bátegas grossas desfazendo-se nos rochedos. As mãos, de dedos fortemente cruzados, faziam eco surdo daquelas soluçantes vozes. Manchas mirradas e escuras engrossavam o magro grupo, nas lamentações e nas preces, estas mais baixas, graves e cheias de fé, das quais se destacavam os gritos agudos das vozes mais jovens, temendo o pior… Algumas, já quase desfalecidas, deixavam-se conduzir pelos braços da razão, virando sempre o rosto na direcção do mar, numa esperança que se despedaçava contra aquele horizonte negros. Lentamente, a praia foi-se esvaziando, despedindo os gritos e as preces em todas as direcções. Dos rochedos, lutando contra o desespero e a angústia, apenas iluminada luzes rápidas dos relâmpagos, uma mancha dobrada sobre si mesma, resistia à intempérie. Subitamente, um grito lancinante libertou-se e atirou-se contra a fúria da natureza, rasgando tudo à sua volta, abrindo caminho até ao céu carregado. Mas nem sempre era assim, naquela pequena comunidade, onde toda a gente se conhecia, se ajudava. O casamento, os baptizados e as demonstrações de fé eram momentos de alegria onde toda a gente participava. Depois, a busca por uma melhor vida, levou os filhos daquela terra a procurarem um meio de vida melhor e mais seguro, e, os que não partiram em busca de terras desconhecidas, procuraram outros empregos em cidades próximas, mas, a pesca está-lhes na veias e eles, nas férias, feriados e dias livres reúnem-se, pela manhã, pegam nos barcos de seus pais, ou noutros já construídos por eles, e entram pelo mar dentro, estendendo a rede cujo traço é desenhado pelas bóias à superfície. Ao fim da tarde, a faina repete-se, e, embora já não se faça por necessidade, ela faz-se sobretudo pelo amor ao mar gosto e aos ensinamentos que pais e avós lhes transmitiram e que eles querem preservar transmitindo-os aos filhos… A paisagem também se transformou, e os prédios altos, substituiram as vivendas e invadiram as dunas, destruindo toda a beleza natural e a alma daquela localidade.

 



publicado por fatimanascimento às 18:50
Terça-feira, 15 de Julho de 2008
O sol estava alto. As caras franzidas, vermelhas do esforço, pararam e encaram-me. Regressara, há pouco, da praia e vira-os a jogar à bola, no largo. Saí de casa e fui ao encontro deles. Rapazes e raparigas jogavam à bola. Saudaram-me de olhos semicerrados, devido à claridade do sol:
-Que estás a comer? - a pergunta já familiar não me surpreendeu.
Era um rebuçado de morango, que me haviam oferecido na viagem. Colocara-o, havia pouco tempo, na boca e apenas começara a provar o seu sabor agridoce. Preparei-me para o que se seguiria. Várias mãos se estenderam na minha direcção:
-Dá-me um bocadinho! – pediram, em uníssono, várias vozes suplicantes. Eu hesitei por momentos. Eram tantos para um só rebuçado, já parcialmente derretido! Olhei aqueles olhos ansiosos, cansados do esforço recente e tomei a decisão. Parti o rebuçado com os dentes e comecei a distribuí-lo por todos. Coube um pedaço minúsculo a cada um, mas ninguém refilou, embora eu tivesse notado que alguns repararam, nos tamanhos dos pedacinhos. As vozes emudeceram saboreando aquele momento de descanso frutado. Sentaram-se no passeio, em frente do meu prédio, curvados pelo peso do cansaço. A bola, já gasta, parada aos pés do dono, olhava-nos amorosamente. Uma aragem, aproveitando o final da tarde, esgueirou-se dos ramos das árvores, cujas folhas dançavam serenamente, e veio presentear-nos com o seu bafo ainda morno. Kimba, muito aconchegado a um nós, foi afastado com cuidado. A sua língua cor-de-rosa pendia dos dentes afiados, acusando o calor. Os olhos amorosos perdidos no ar, pareciam esperar algo.
O grupo continuava calado saboreando aquele momento de descanso. As férias? Tinham sido curtas, para a espera ansiosa que eu experimentara. Tinha conhecido rapazes e raparigas, mais ou menos da minha idade, com quem eu partilhara as minhas brincadeiras. Era um local seguro, com muito pouco movimento, tal como o que tínhamos ali. De um lado o rio, dos outros, as dunas rodeavam o pequeno aldeamento, de pequenas casas amarelas, e, para lá delas, o mar que batia fortemente as suas águas contra o areal ferido e a rochas aguçadas. Era ao som dele, que adormecia. Era durante a noite que a sua voz forte percorria as ruas desertas, com o seu canto lamentoso.
Eles escutaram atentamente o meu relato, de olhos fixos no ar ou no chão.
Sempre regressara com saudades, mas, sempre que os via, sentia-me em casa.


publicado por fatimanascimento às 13:53
Domingo, 13 de Julho de 2008
Encontrei, um dia destes, um amigo meu de infância. Foi no hall de entrada de um centro comercial. Ele olhava, com cobiça, um daqueles bolos caseiros que uma loja minúscula vende, ao fundo do hall. Reconheci-o imediatamente, apesar dos cabelos brancos. Tudo era igual nele. Os gestos, a timidez, o olhar franco. É da minha idade, separam-nos apenas dois dias do mês de Fevereiro – ele faz anos a 11 e eu a 13.
Morávamos os dois em prédios contíguos, em rés-do-chão idênticos, no mesmo largo, junto da mesma capela. O largo era, nas manhãs e tardes quentes, o nosso campo de futebol, onde, vermelhos do esforçado calor e do cansaço, tentávamos chegar à baliza vizinha, sempre dispostos a correr para a nossa, quando o ataque da equipa adversária se desenhava. Os nossos momentos de alegria, ao conseguir o ambicionado golo, a tristeza ao sofrer outro. A velha pequena casa, do lado oposto ao meu prédio, cujo portão se abria, para deixar passar a velha dona irritada, sempre que o remate, atingia o alto e largo portão. Também o largo carreiro, que se estendia preguiçosamente ao lado do meu prédio, escavado pela chuva em inúmeras, secas e largas poças, serviam, conjuntamente com as pequenas, de campo ideal para o jogo do berlinde. Jogámos, muitas vezes lá, afastando-nos para os lados, sempre que um esporádico, lento e destemido carro, passava balançando perigosamente nas suas quatro rodas, deixando o jogo intacto, que recomeçávamos ansiosamente. Ganhei-lhes muitos berlindes, em esporádicos momentos de sorte, e perdi-os também. O olival, ao nosso lado, adormecido ao suave calor e embalado pelo canto suave dos pássaros, estendia-se preguiçosamente no seu tapete verde, tingido das mais variadas e alegres cores. Era nele que fazíamos as nossas incursões, sempre que nos cansávamos de percorrer o mesmo espaço e precisávamos de encontrar outros desafios. Procurávamos nele os tesouros escondidos, do velho mosteiro franciscano, enfrentávamos os mais temíveis adversários… e acabávamos, inexoravelmente, nas mãos das nossas mães, com as orelhas puxadas até ao limite… pagando, assim, a aflição de muitos minutos de chamada infrutífera, quando, no auge da nossa imaginação, nos encontrávamos no momento mais emocionante da nossa aventura, ignorando tudo o que se passava à nossa volta. Acordávamos, quando, um de nós, mais ligado à terra, dava conta das horas ou de uma voz a gritar por um de nós…
Olhámo-nos, sorrindo ao passado, que nos unia por laços muito fortes.


publicado por fatimanascimento às 13:33
Quarta-feira, 16 de Maio de 2007
Todas as minhas memórias estão ligadas àquela casa, não me lembro da outra, dos arredores de Lisboa. Empoleirada na zona alta da pequena vila, batida pelos ventos fortes e trovoadas violentas, livre de multidões e de carros... Não é tanto a casa em si, mas o espaço em redor que ficou gravado na minha alma. Da casa, recordo a frescura do ambiente nos dias quentes de verão e o aconchego nos dias chuvosos e frios de inverno. Era um rés-do-chão direito, voltado no sentido este-oeste, que fazia esquina com outro prédio, também de quatro andares e também distribuídos lado a lado. A escada separava os quatro andares desde a porta da entrada, e dela avistavam-se os vasos semeados nos degraus, desde a entrada do prédio até à altura em que se bifurcava e dava acesso aos dois andares superiores, meio imersos na obscuridade como dois satélites laterais. A porta da rua abria-se bloqueando o acesso à minha porta de casa, pelo que, depois de aberta tinha de se fechar ou encostar para entrarmos sem problemas. Quando eram várias pessoas, tinham de fazer uma verdadeira ginástica para encostar a porta, tendo mesmo algumas pessoas de subir alguns degraus para entrar na sala. A minha caixa de correio metálica era a primeira do lado da minha porta. Rasgada na largura da parte superior, ela tinha meia dúzia de curiosos buracos no fundo, também dispostos horizontalmente, e pelos quais se espreitava a possível correspondência. A sala quadrada estava mobilada de forma simples. Os quatro sofás distribuídos pelas quatro paredes, o grande virado para a porta e para a pequena mesa de tampo esverdeado com tira negra à volta, e um protuberante ventre metálico carregado de revistas já antigas, parecia perdida no meio do tapete cor de tijolo. À direita, a janela tapada com uns cortinados brancos compridos e direitos, estavam limitados nos dois lados por outros de tecido grosso colorido, que caíam direitos. Ao meio da casa, havia uma outra, também quadrada, que dava acesso a todas as outras divisões e dependente da iluminação destas. Era nesta divisão que se encontrava a mala oriental que o meu pai trouxe de Macau. Tratava-se de uma arca rectangular e alta, cravejada de pioneses abobadados dispostos de forma artística. Era a arca dos meus sonhos! Quando ela se abria, cheirando fortemenete a cânfora, a minha imaginação voava de encontro a destinos desconhecidos... adorava espreitar os recantos, gavetas, gavetinhas e reentrâncias... a cortina que protegia os fatos muito direitos como militares numa parada... os lenços sedosos... e outras preciosidades orientais como fotografias meio amareladas, tiradas pelo meu pai aquando sua estadia de quatro anos e meio em vários pontos daquele pedaço de terra na ponta oriental da China. A olhar para ela embevecida, toda alva, a minha pequena estante com livros que me ofereceram, e, mais tarde, que fui adquirindo com algum dinheiro que me davam ou com a minha magra mesada. Ao meio, uma mesa em forma de barril aberto de três andares onde eu colocava as revistas que queria esconder da inspecção periódica da minha mãe, evitando assim uma lição de moral sobre os desperdícios de dinheiro em revistas de música e uma lição de poupança doméstica em tom despeitado. A sala de jantar, encostada à sala de estar, era a única divisão rectangular com uma mobília castanha clara composta de uma mesa quandragular com alongamento e dois móveis baixos, um deles com uma cristaleira ao centro. Estes dois passavam a vida conferenciando por cima da mesa que lhes tapava teimosamente a vista com uma colorida jarra alta cheia de flores artificiais, que eu detestava mas que faziam um arranjo bonito multicolor. A janela em frente da porta estava coberta com uns cortinados claros e finos limitados nos lados por outros de um azul forte. Era a divisão menos utilizada da casa e estava sempre impecável. A estreita casa de banho rectangular, tinha uma banheira comprida do lado direito da entrada e, ao fundo, a retrete e o bidé, lado a lado, e do lado esquerdo, o lavatório do qual se podia vislumbrar o telhado da garagem através de uma janela pequena com mosqueteiro. O quarto dos meus pais, entre o meu e a casa de banho, tinha duas mesas de cabeceira e uma cama virada com os pés para a janela de portadas interiores de madeira e, do lado direito da porta uma cómoda virada para o guarda-fato no extremo oposto da parede. O meu quarto, era composto de dois divãs encostados a paredes opostas, aproveitando os lados livres deixados pela janela, a cujas extremidades foram colocadas astuciosamente os pés e as cabeceiras de duas camas do quarto de uma vizinha da minha idade que haviam sido desmanchadas e substituídas por outras. Na parede do lado direito da porta, por cima de um dos divãs, uma prateleira que havia acompanhado as cabeceiras e os pés das camas, de onde espreitavam as minhas bonecas em pé ou sentadas. O luar, trespassando as vidraças, embatia em duas portadas de madeira cinzenta interiores. Frente a ela, e encostada à parede oposta do quarto, três malas encavalitadas umas em cima das outras e tapadas por um pano ao jeito de arca, guardavam religiosamente a roupa do corpo, ora da estação quente ora da da fria. A cozinha entalada entre o meu quarto e a despensa, (a única estreita divisão interior), de forma rectangular, tinha pegada à parede oposta à da entrada os armários suspensos da parede e o armário rasteiro das panelas e tachos por baixo da bancada, à esquerda, meio encoberto pelo frigorífico, e o do gás, mais à frente, perto do fogão. Este emploeirado, qual pássaro em seu ramo, em cima de uma bancada de mármore baixa parecia pronto a abrir a asas a todo o momento e a desaparecer chaminé acima... Ao lado deste, a porta que dava para o quintal. À esquerda, o tanque da roupa, em cima de um poleiro de polido de cimento cujo acesso se fazia do primeiro degrau da porta e, em frente, o meu quadrado de terra a que chamávamos quintal, com uma pereira e que era cavado periodicamente pelo meu pai, nas horas vagas, abrindo caça à ervas daninhas que invadiam o quintal. Este quadrado multiplicava-se por quatro estendendo-se todos uns ao lado dos outros. Depois destes, uma garagem encostada à casa de banho da minha casa com uma largo e comprido caminho de acesso. Na outra extremidade, o portão que saltava sempre, evitando assim o ruído desconfortável que fazia sempre que se abria. Do lado oposto dos quintais um outro pequeno que dava para o carreiro de terra cheio de poças sempre abertas pelas chuvas dos invernos e no qual cabia um carro de cada vez... do lado de lá, estendia-se o olival com oliveiras pequenas e acolhedoras onde brinquei muitas vezes às casinhas. Frente aos quintais, e do outro lado da rua do portão grande que dava acesso à garagem um espaço coberto de figueiras e oliveiras que cobriam o terreno livre ao longo do bairro. Antes de lá chegar, o poço, o mistério de um poço que nunca conheceu água, pois nem a da chuva retinha no fundo. O meu prédio, assim como outros das redondezas e as vivendas, devia ter feito parte de um terreno pertencente à capela de Santo António que seria cultivado pela ordem se S. Francisco Xavier e aquele poço, fazia talvez parte desse terreno... Do lado das salas da minha casa, ficava um largo rectangular, cujo lado direito era ocupado pelo terreno daquela igreja, onde hoje ainda se erguem as tendas da festa. A minha vida está muito ligada a esta igreja que eu conheço como as minhas mãos e com a cumplicidade de um casal de velhotes, e antes deles outros, que sempre admiraram a minha paixão por aquela capelinha... Da janela do meu quarto, dominando o resto da paisagem, erguia-se triunfante a serra d'Aire, uma imensa mancha azul que, nos dias mais nostálgicos, eu olhava longamente, imaginando que era um gigante dinossauro há muito adormecido e petrificado...


publicado por fatimanascimento às 00:34
Quarta-feira, 02 de Maio de 2007
Os meus avós paternos viviam numa casinha empoleirada na parte superior de uma faixa de terreno esguia que ia da estrada principal da aldeia até um carreiro que o limitava na outra ponta. Entrava-se por um desengonçado portão alto de madeira corroída, subindo um carreiro de terra e pedra solta. A casa dormitava à direita e os barracões à esquerda, ambos separados pelo carreiro de acesso que acompanhava o terreno em todo o seu comprimento.
A frente da casa, tapada com umas oliveiras dos olhares indiscretos dos peões, emoldurava a casa enfeitada de flores multicolores, semeadas em canteiros improvisados que davam um aspecto encantador à casa. À saída da porta principal, o pórtico sustentado por duas colunas, com canteiros de muro formando um ângulo recto e acompanhando o traçado do pórtico, eram uma explosão de cores e formas na Primavera. A casa em si não era grande, formada somente por uma sala e três quartos, divididos ao centro por um corredor em linha recta que ligava as quatro portas opostas das divisões. A sala era graciosa, com a mesa de madeira clara ao centro rodeada de quatro cadeiras e um aparador com loiça colorida encostado à parede. Pendurado na parede à esquerda do aparador, o relógio de pêndulo, encerrando em si o mistério do tempo, contava regular e incansavelmente, dia e noite, as horas com um ritmo certo e lento. Da janela, filtravam-se os raios de sol através dos cortinados dos vidros, emprestando às paredes pálidas uma cor quente e suave, dos fins das tardes soalheiras. Em frente à porta da sala, abria-se o quarto ocupado outrora pelo meu então jovem pai, com uma cama e uma mesa de cabeceira antigas e uma foto sua sorrindo doce e calmamente para nós. Ao lado da mesa de cabeceira, e virado na direcção da cama, o guarda-fatos fitava longa e melancolicamente a janela. Era o quarto mais soalheiro e quente da casa, o mais bonito também. Ao lado desse quarto, levantava-se o dos meus avós mais sombrio com uma cama de madeira mais escura, uma mesa de cabeceira com um candeeiro ao centro e uma mesa longa do lado da janela e os indispensáveis bacios meio ocultos debaixo da cama. Em frente do quarto deles, um outro com uma cama de ferro branca tapada com um colchão de camisas de milho e uns cobertores de trapos coloridos, artisticamente ligados uns aos outros, e o fiel bacio de loiça branca espreitando maliciosamente debaixo da cama; encostada à parede do lado esquerdo da porta, uma arca escura que fitava de lado uma longa mesa de madeira escura, encostada à parede, junto à cabeceira da cama. Em frente à janela, um lavatório branco, gasto pelo tempo e o uso, com uma bacia à espera de ser servida pelo seu fiel jarrão repleto de água. Do ferro redondo, junto à bacia, pendia uma toalha branca, exalando um aroma a sabão. Era aí que eu dormia nas poucas vezes que eu lá pernoitava, só mais tarde tive a oportunidade de trocar pelo do meu pai. A porta traseira da casa dava para um pátio coberto de telha colocado numa estrutura de madeira. À direita do pátio, estava a cozinha da casa, um edifício de uma só divisão que encerrava uma chaminé alta, onde se encontrava o fogão de lenha e um poço, à direita dele, sempre cheio de água fresca e límpida. Na parede oposta ao fogão, uma mesa longa com duas gavetas. Dessa parede, por cima da mesa das refeições, a janela esforçava-se por dar claridade àquela divisão única, ajudada pela porta, a seu lado, cujas fitas ondeavam mansamente ao sabor da brisa de verão. Do lado de fora, colado à parede da cozinha, um tanque para dentro do qual corria um grosso jacto de água igualmente límpida e fresca. Seguia-se-lhe um estreito pedaço rectangular de terra dividido em pequenos canteiros semeados de hortaliças variadas. O caminho a todo o comprimento dele, separando-o da casa, estava tapado por uma vinha que servia de tecto natural e improvisado à dita passagem. Do lado contrário, uma romãzeira de tronco torcido, mas de vontade férrea, enchia-se generosamente, todos os anos, de doces e rosadas romãs suculentas. Era um dos sítios onde eu mais gostava de brincar. Frente à cozinha exterior, atravessando o pátio, e acompanhando o comprimento da casa, ficavam os barracões das arrumações. À entrada o dos longos tabuleiros destinados à seca dos figos, também garagem da carroça, quando ainda a havia, logo seguido do armazém dos cereais onde se depositava a farinha e outros cereais nas fundas e longas arcas de madeira escura, o curral da mula e das cabras ou ovelhas, dividida em três partes por cercas: à direita para os animais e, ao longo da parede esquerda, todos os artefactos necessários à carroça e à mula. Depois deste, vinha o barracão onde se encontravam as capoeiras dos coelhos e outros artefactos que não tinham lugar certo para ficar. Era nesta divisão que se encontrava a escada que dava para o forro ocupando o espaço entre as telhas e todo o comprimento do tecto dos barracões agrícolas. Era o único espaço que me estava interdito devido ao perigo de queda da escada. Frente às traseiras da casa, a capoeira das galinhas onde se passeavam também outras aves à mistura e, pegadas a ela, as dos outros coelhos. Para lá das instalações agrupadas à volta da casa, estendia-se o terreno que descia ao encontro de um pedaço de terreno plano, limitado por um regato, para logo subir novamente até à extremidade do mesmo. Grande parte desta faixa esguia estava ocupado por figueiras, oliveiras, uma nespereira gigante onde só o meu pai subia para apanhar nésperas; só a faixa de terreno plana era cultivável mas era indescritível a quantidade de culturas variadas num espaço tão pequeno todo realizado pelo esforço dos braços do meu avô a quem o meu pai ajudava nos tempos livres! Até vinha lá havia! Depois, para lá do regato, repetia-se a mesma paisagem de oliveiras e figueiras até à extremidade. O outro local onde eu me refugiava para brincar era ao pé deste regato que corria alegremente espalhando pelo ar morno das tardes a sua canção harmoniosa. Ali, passava horas enfiada nas minhas brincadeiras infantis que se desfiavam numa torrente imaginativa interminável. Não dava conta do tempo passar... e era um alívio sempre que se demoravam a encontrar-me! Fiquei proibida de utilizar aquele espaço tão querido. Ninguém se queria dar ao trabalho de andar cerca de duzentos metros para me chamar para as refeições!
Muitas das minhas recordações estão ligadas a este espaço, passeio obrigatório nos nossos fins-de-semana, uma vez que o meu pai amava aquele espaço, que lhe trazia a paz de espírito e a força anímica de que tanto necessitava para o seu trabalho.


publicado por fatimanascimento às 02:55
Sábado, 14 de Abril de 2007
Deus sempre foi essencial na minha vida... desde que me lembro. Na infância, Jesus, que tinha um rosto, era o meu preferido. Deus, que me diziam ser seu pai e nosso, sempre me surgia na memória mais com aspecto de avô. Era, portanto, com Jesus que eu me entendia. Era um pouco como um irmão mais velho. Foi na catequese que eu tive o primeiro contacto com eles, antes, eu lembro-me vagamente de rezar a uma entidade abstracta todas as noites, quando o sono permitia. Era como uma cantilena que eu memorizara e repetia, noite após noite, por vezes, com algumas lacunas que me obrigavam a voltar ao início, e repetir tudo, antes de me aconchegar entre o fino e maleável colchão e o peso dos cobertores quentes e suaves. Na catequese, o meu primeiro livro tinha umas figuras tão perfeitas e umas paisagens tão bonitas que, aliada à mensagem, me faziam sonhar... e, do que via, eu continuava mentalmente a história fazendo mover aquelas personagens... são doces folhas de memórias soltas! Ainda adolescente, pensei seriamente em seguir a vida religiosa. Pensei nas carmelitas e também nas irmãs missionárias que dedicavam a sua vida ao serviço dos outros... e o meu coração balançava indeciso! Ambas me atraíam por razões diferentes: na primeira, seduzia-me a vida simples e verdadeira que eu imginava existir num local habitado por essas irmãs; na outra, contudo, seduzia-me a ajuda aos outros e, sobretudo, a partida que simbolizava também o afastamento da sociedade escravizante em que vivemos. A liberdade de poder agir em prole do bem daqueles que necessitam, partilhando com eles sucessos e desânimos, amando-os como família que são, a grande família de Deus! Ainda hoje eu sinto em mim um apelo inexplicável... Depois, com o avanço da vida, a minha fé nunca me abandonou, embora tenha havido momentos em que me deparei com acontecimentos que a puseram duramente à prova! Devo confessar que me fizeram mal de toda a maneira e feitio. Pessoas que me deveriam proteger devido aos laços que nos uniam então, e que seriam insuspeitáveis, embora uma delas sempre tenha mostrado por palavras e actos o seu ódio por mim... mas a outra enganava mais. Era mais discreto e hipócrita! A máscara perfeita! Mas nem com o mal que me fizeram, fosse ele visível ou não, e fazem, eles vão conseguir afastar-me do caminho que me leva a Deus. Poderá haver curvas apertadas no meu caminho, poderá um dia a dor falar mais alto que a razão, poderá um dia a dor transformar-se em revolta amarga... mas nem por artes mágicas negras eles haverão de me escravizar ao mal... o desafio está lançado! Deus é grande e irá ajudar-me! Mesmo que eu me esqueça disso por momentos... ou me façam esquecer!


publicado por fatimanascimento às 13:20
Terça-feira, 10 de Abril de 2007
Como passava muito tempo em casa sozinha, eu construí um mundo imaginário no qual eu me abrigava frequentemente. Esse era o mundo onde os meus medos desapareciam como por magia. Nele não havia maldade só bem. Era um mundo tão diferente do quotidiano cheio de palavras gritadas às paredes da casa, portas atiradas violentamente contra o trinco, e silêncios vazios cheios de uma muda violência latente. A solidão, por vezes, era sinónimo da tão ansiada calma. Como não havia um bom casamento, os progenitores tentavam limar as arestas de ambos os lados, sem sucesso. Isto embrenhava-os em tão longas e calorosas discussões, que eu não sabia muito bem quando deveria sair do quarto para ir à casa de banho. Esperava geralmente pelas tréguas para me escapulir às palavras que me sobrevoavam a cabeça à laia de balas cruzadas. Antes, porém, esperava atrás da porta o tempo suficiente para tentar perceber o tempo daquelas tréguas traiçoeiras, e, quando as portas eram arrancadas aos trincos, soltando as vozes encolerizadas como animais selvagens, eu percebia que o meu instinto havia ditado correctamente o tempo de espera. Nunca sabia ao certo quando seria ou não apanhada no meio da batalha. Estas discussões gastavam-lhes as energias e o tempo, pelo que a impaciência governava a casa. Eu tentava, a todo o custo, passar despercebida, tanto a um como a outro, ou seria apanhada no meio do fogo cruzado. E ainda sobrava muito para mim!
A minha relação com a escola, era de amor e ... de ódio. Tanto tinha desempenhos bons como outros deveras maus. Acho que foi sempre assim! A minha falta de concentração balançava entre esse mundo imaginário ou os problemas dos progenitores. Às vezes o medo era tão desmesurado que parecia não caber dentro de mim e sair por cada poro da pele. Não sei se era visível a olho nu ou se estava tão bem guardado que só com um microscópio se encontrava. De facto, quando o ambiente na sala de aula era favorável, assim como em casa, eu era uma garota feliz; quando o contrário se dava, eu queria era desaparecer... E foi assim que, um dia, eu que esperava numa longa lista por uma operação às amígdalas, e como estava farta da escola, resolvi antecipar essa operação; despedi-me da professora que me desejou um rápido restabelecimento. Naquele mundo fictício, no qual eu me refugiava, tudo parecia possível e não dava muita atenção ao assunto. Quando a minha mãe me chamou no dia seguinte, eu disse que não tinha escola. Mas, por azar ou sorte, o meu vizinho resolveu ir a minha casa perguntar se eu não ia. A minha mãe, ao responder, viu uma das filhas da minha vizinha que era minha colega de sala. A minha mãe fez-me levantar e acompanhou-me à escola. Ficou a saber de tudo enquanto me apertava violentamente a mão e me lançava olhares encolerizados de vergonha. Quando ela saiu, eu sentei-me, envergonhada, na minha carteira e... fui o alvo da cólera da professora, e o centro das atenções das minhas colegas. Só a minha colega de carteira me parecia compreender, embora não totalmente! Mais uma vez me sentia desamparada... e desta vez, fui a vítima do meu próprio imbróglio!


publicado por fatimanascimento às 02:34
Terça-feira, 28 de Novembro de 2006
muitos anos atrás, eu vivi numa pequena localidade, onde o espaço, o ar puro e a alegria não faltavam. Todo o meu imaginário está ligado àquela terra, especialmente à zona alta da mesma, onde vivi enquanto ali permaneci. Toda a vizinhança se conhecia, todos se falavam e viviam uma existência alegre e despreocupada. Foi neste clima que vivi a minha infância, junto aos meus vizinhos e companheiros de brincadeiras (o Majó, a Paula Tavares, o primo desta, o Carlos Manuel, também conhecido por "Vences", a Paula Saraiva, a Isabel Matos, o Paulo Paulino, o João Pedro Santos, o Cruz, O Zé Carlos... e o Kimba, o nosso cão de raça indefinida, de cauda muito curta, todo negro à excepção da sua mancha branca do pescoço, que fazia lembrar uma gravata.
Adoptámos o cão, dávamos-lhe de comer e... foi o amigo mais fiel que se possa imaginar! Diria mesmo devotado! Acompanhava-nos em todas as brincadeiras malucas que inventávamos. Mais tarde, quando fomos para escola e, depois, para o ciclo, ele acompanhava-nos durante os cerca de 2 km de trajecto, esperava por nós e acompanhava-nos no regresso a casa. Quantas vezes saímos do recinto da escola para o ir defender de miúdos que o agrediam...a ele que adorava miúdos! A imagem dele acompanha-me sempre protegendo-me como sempre fez... foi o único amigo que nunca me defraudou! Quando chegámos à juventude, já não queríamos que ele nos acompanhasse, então, ele virou-se para geração seguinte, acompanhando-a tal como fizera connosco... com a mesma devoção! Quando nos juntávamos, a geração a seguir à nossa fazia questão em nos seguir, e quando nos separávamos, ele percorria a sua indecisão no espaço que separava os dois grupos – o dos mais velhos e o dos mais novos. Quantas vezes ele não se sentiu dividido entre nós e a nova geração? Se nós tivemos sorte nalguma coisa foi, sem dúvida, no espaço que circundava as nossas casas. Do lado da porta da cozinha, para lá dos muros do meu quintal, da ruela em terra batida e semeada de pedras brancas, e de um espaço amplo, coberto de erva que cercava o poço, havia um olival, com algumas figueiras à mistura. Ao lado do prédio onde eu vivia, para lá do carreiro largo, cheio de poças largas e fundas, havia outro olival que acompanhava este carreiro até ao final do mesmo, igualmente salpicado de figueiras de figos pretos e verdes, ao fundo deste, do lado esquerdo, iniciava-se outro carreiro que nós chamávamos “Carreiro das Cobras”, que confinava com as marcas das quintas que ali existiam (e existem!). Este ligava a uma estrada larga de duas faixas, por nós conhecido como auto-estrada, que limitava o olival a oeste. Junto das bermas da “auto-estrada” encontravam-se as bombas da sonap (hoje propriedade da Galp) e o café, que ainda hoje existe, embora modificado. Eram agradáveis os passeios no verão até lá, embora não precisássemos de ir tão longe… Lembro-me com saudade, do mês de Junho e dos santos populares, altura em que os irmãos mais velhos dos meus amigos de infância iam apanhar lenha, rosmaninho,… para fazer a fogueira que acendiam na noite em que se festejava o dia dedicado a cada santo. Como nós ansiávamos por essa ocasião! Lembro-me de saltar de mãos dadas com os meus amigos de infância ( a Dulce, o Fernando e a Alicinha) atravessando as altas labaredas coloridas e perfumadas… sinto ainda a excitação provocada pelo medo e como apertávamos as mãos uns dos outros e como nos lançávamos através da cortina de fogo e da satisfação por termos conseguido ultrapassar aquela barreira! As vozes dos pais gritando conselhos e supervisionando os nossos saltos. Lembro-me da música que nós ouvíamos naquela década de setenta e que ainda hoje ouço e que me trazem recordações adormecidas há muito. Lembro-me da capela do largo de Santo António, cuja capela tinha o mesmo nome, uma das mais belas que eu já conheci, e onde me gostaria ter casado um dia… conheci os cantos àquela capela, mesmo os recantos que outros nunca chegaram, nem chegarão, a ver. A parte frontal do meu prédio ficava virado para o largo e a capela, do lado direito do mesmo, marcava o início do olival… Lembro-me da festas de Santo António, das marchas, da procissão, a chegada e venda das fogaças… Era uma semana durante a qual os cheiros se misturavam com a música e as luzes… Nas traseiras da minha casa, alheados a toda a confusão, os pirilampos passeavam as suas luzes esverdeadas e intermitentes. Cansados do reboliço da festa, refugiávamo-nos naquele mundo feérico, observando e brincando com aqueles seres tão luminosos. Pouco a pouco, esse espaço desapareceu, foram cortando as árvores, construindo moradias e prédios e, hoje, o Bairro de Santo António, quase irreconhecível, bate-se contra o atrofiamento em que o deixaram…


publicado por fatimanascimento às 08:45
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