Quinta-feira, 03 de Setembro de 2009

 

A tarde desceu alegre e serena. A brisa marítima acariciava o calor da tarde abrandando os fortes raios solares. A macia areia dourada e morna agitava-se timidamente debaixo dos nossos pés espelhando os trémulos leves ramos dos altos arbustos. À nossa volta alongava-se, a perder de vista, a imensa península, abrindo caminho pelo oceano. Atrás, os adormecidos prédios altos que teimavam em resistir à ruína. Saímos, lado a lado, à descoberta daquela imensa superfície. Que direcção tomar? Escolhemos a que revelava alguma vegetação, no sentido contrário à zona árida. De um lado, mar e vegetação que emoldurava a extremidade da do areal. Do outro, alguns complexos, mais modernos, que tapavam o oceano. Olhámos em frente, combatendo a brisa forte que agitava fortemente os nossos cabelos. Partimos à descoberta do local. Avançávamos cautelosamente, avaliando os rostos masculinos que se cruzavam connosco olhando-nos com admiração e um outro sentimento indefinível que não nos fazia sentir seguras. Os rostos pareciam multiplicarem-se à medida que avançávamos, movendo-se em grupos maiores para logo alternarem com outros menores. Obedeci à sugestão sussurrada ao meu lado. Voltaríamos ao nosso poiso, como um bando de pássaros assustados, para voltarmos mais tarde, quando houvesse menos rapazes. Que acontecia ali? Demos meia volta e apressámos o passo, remando na direcção das intermináveis ondas masculinas de um rio indomável. A meio caminho, uma voz masculina interpelou-nos, enquanto as outras, em grupo, murmuravam, um pouco mais adiante, enquanto a esperavam, olhando-nos de forma avaliadora. Trocámos algumas cautelosas palavras com aquela excitada voz, avaliando o grupo que formara um casulo sussurrante, que logo se juntou às restantes. Onde teríamos nós caído? Que acontecera ali? O paraíso transformara-se subitamente num inferno frio. Logo atrás, uma outra onda masculina se formara e ameaçava abater-se sobre nós, como o mar invernoso contra as paredes da marina. Avançámos algo confusas medindo sempre a distância que nos separava desses grupos. À medida que caminhávamos, a aproximação dos altos e protectores prédios, que nos alojavam por alguns dias, fez-nos retomar a confiança. Olhámos por cima do ombro vendo os novos complexos engolir aquela interminável torrente masculina. Os últimos grupos já nem reparavam em nós. Sorrimos de alívio, algo cansadas da tensão vivida momentos antes. Reunimo-nos, junto da janela, observando o mar sereno que nos olhava convidativo. Os raios oblíquos vestiam o mar de palhetas douradas que ondeavam como gaivotas douradas ao sol. O rio humano que sulcara horas antes aqueles caminhos pareciam haver secado, abandonando o local à paz dos seus elementos naturais. O caminho estava livre. Era nosso. Chegara a nossa hora. Iríamos descobrir aquelas paragens que nos aguardavam de braços abertos.

Passeámos junto do mar, deixando a água límpida acariciar-nos os pés nus. Rimos e brincámos como duas universitárias em férias. A dado momento, algo prendeu a nossa atenção. Parámos e varremos as águas que se instalavam dentro do nosso campo de visão. Seria possível? Uma onda de alegria tomou conta de nós. Estaríamos a sonhar? As formas aproximaram-se alguns metros do local onde nos encontrávamos. Três focinhos, desenhando um triângulo à superfície como um minúsculo arquipélago, adornados de dentes finos, abriam-se em alegres sons guturais, olhando-nos com uns ternos olhos brincalhões, agitando a água de tempos a tempos, como se nos incentivassem a aproximar. Entrámos lentamente na água, tacteando a areia debaixo dos pés, à medida que nos afundávamos na água, tentando tocar-lhes sem, contudo, conseguirmos realizar esse momento de íntima felicidade que é o toque entre ser humano e animal. Um deles ultrapassou a barreira formada pelos dois progenitores e aproximou-se mais. Tratava-se do mais pequeno. Era tão encantador na forma como comunicava connosco, que ficámos hipnotizadas pela sua presença. Batia com a barbatana peitoral na água encorajando-nos a ir ter com ele. Avançámos com os olhos postos nele, até sentirmos a água a engolir-nos. Entreolhámo-nos frustradas. Não conseguíamos avançar mais, nem ele. Ele parecia querer apagar a distância, que era mínima, entre nós. Correria o risco de ficar preso nas areias? Depois de várias tentativas, de ambas as partes, o contacto não passou da corrente de energia benéfica a que chamamos empatia. Subitamente, os nossos olhos desviaram-se na direcção de um outro som familiar já familiar mais longínquo que parecia querer captar atenção de alguém. Outro golfinho! Os nossos inesperados visitantes ainda se mantiveram uns momentos mais junto de nós, até perceberem que a situação não avançaria para além do que havíamos experimentado. Foi então que, com alguma relutância, se foram movendo puxados pelo som que os orientava.

Olhámo-los longamente, acompanhando-os na sua viagem de regresso. Uma onda de saudade varreu-nos a alma. O mais pequeno voltou-se para nos observar uma última vez, antes de partir definitivamente. Levámos as emocionadas mãos à boca. Nunca uma presença tão breve nos enchera de tão profunda felicidade!

O silêncio abateu-se sobre nós no regresso. O sol, já meio encoberto pelo mar, acenava num breve e aquoso adeus em tonalidades de laranja.

- Sabes que os golfinhos não se aproximam de todas as pessoas? – perguntou a voz sonhadora ao meu lado, retirando-me do meu estado de pura felicidade.

Fátima Nascimento



publicado por fatimanascimento às 14:05
Domingo, 29 de Junho de 2008
As noites claras de Junho desciam serenamente sobre a terra cansada e dorida do sol escaldante, proporcionando-lhe as tréguas merecidas.
A música, saída dos altifalantes, lembrava-nos que a festa estava a começar. Daí a pouco, uns punhos fechados, batiam forte e apressadamente contra o vidro da porta da cozinha. Após o jantar, lá ia o nosso bando ao encontro daquele chamamento.
No corredor, que dava para os quintais do meu prédio, éramos presenteadas com aparecimento dos pirilampos esvoaçando na sua intrigante dança esverdeada, arrebatando-nos para um distante e iluminado mundo encantado, gerado à volta das nossas cabeças.
Divertíamo-nos a alcançá-los com as mãos, onde os fechávamos, por momentos, para contemplar aquelas pequenas maravilhas cintilando, aturdidas, nas palmas das nossas mãos. Era um momento mágico, intemporal e de fascínio colectivo. Observávamo-los como se quiséssemos desvendar o mistério da maravilhosa luz. Depois, já refeitos, os pirilampos levantavam voo das nossas palmas, de encontro à intrincada dança desenhada pelos companheiros, no ar morno da noite.
Despertávamos, então, para a música que nos chamava para o largo da capela, invadindo e contornando os adultos na nossa velocidade infantil. Sentíamos aquela festa como nossa. Não tinha segredos para nós. Sabíamos de cor a sucessão dos eventos, que preenchiam, com notável nobreza, aquelas noites e tardes excepcionais. A marcha, com os seus arcos habilmente decorados, a luz dos balões, dançando à suave brisa, as saias coloridas que adornavam as ancas, agitadas pela batida compassada da música, as vozes juvenis, soltando a letra dos santos populares, a coreografia perfeita que cruzava e descruzava corpos, em efeitos visuais perfeitos; o cortejo das fogaças, que esperávamos com impaciência e curiosidade, cada ano, e as próprias fogaças que admirávamos de perto, quando descansavam nas prateleiras do pavilhão, sempre ricamente recheadas com iguarias, acomodadas em tabuleiros rectangulares murados, lindamente decorados, com esguios arcos que se intersectavam no ar, presos aos quatro cantos dele; a procissão dos pãezinhos, na qual participei em criança, carregando um dos lindos cestos e, mais tarde, já uma jovem feita, suportando o peso do pesado andor, de um dos santos que guardam os três altares da maravilhosa capela de Sº António.
Nos espaços calmos da festa, enquanto se aguardavam os espectáculos, nós, os mais pequenos, invadíamos o palco, como guerreiros implacáveis, desenhando nele intricadas coreografias nas nossas correrias.
Por volta da meia-noite, como quase sempre nos esquecíamos das horas, lá aparecia uma mãe a chamar o seu rebento, a que se seguiam outras. A minha, como acompanhava a festa da janela da sala de estar, na conversa com as vizinhas, limitava-se a acenar o braço e, quando a minha teimosia fingia que não via, lá vinha ela pelo seu pé, torcendo a boca em sinal de contrariedade, enquanto me puxava pela mão, vencendo a resistência das minhas pernas.
À noite, as casas adormeciam, embaladas pela alegre música dos artistas convidados, que animavam os bailes até de madrugada.
Mas a festa começava muito tempo antes. Era à noite que os infatigáveis vizinhos, depois de um dia de trabalho, (alguns tiravam férias nessa altura), se reuniam para assegurarem os serviços indispensáveis àquela festa popular. Algumas semanas antes, já as vozes agudas dos martelos e dos berbequins desafiavam as calmas noites primaveris. À noitinha, grupos de jovens reuniam-se nos barracões, por baixo da casa do caseiro, para realizarem os preparativos da festa. Dos barracões, passava-se aos palcos, onde se ensaiava a marcha, insistentemente, com paragens a meio, até se conseguir a perfeição exigida. Todos estes passos eram vigiados pelos nossos extasiados olhos infantis. Este ano, levei os meus pequenos até lá, e vi, com agrado, que todas as pessoas se mantinham fiéis à festa, tanto os participantes como os organizadores. São pessoas como estas, que, pelo seu empenhamento e determinação, às vezes vencendo obstáculos duros e contornando outros, (e houve alguns na história desta festa) que mantêm as tradições vivas. Esta festa é um exemplo disso mesmo. Bem hajam, por isso!

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 11:45
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