Domingo, 11 de Maio de 2008
(À minha mãe, Dulce de Jesus do Nascimento Dias, o meu agradecimento pelos maravilhosos momentos que passámos enquanto me contava esta e outras histórias da sua infância e que fazem parte do imaginário popular….)

***

Era uma escura e fria tarde de Primavera. O céu cerrado de nuvens pesadas, ameaçava chuva, não fosse a temperatura baixa. Enrolada no seu xaile de lã, a senhora seguia o esguio trilho, tantas vezes percorrido. Nessa noite, um frio invulgar parecia tomar conta dela. Aconchegou-se mais no seu xaile e ajeitou o lenço na cabeça. Apressou o passo, para fugir a uma possível tempestade que assumia contornos ameaçadores. Olhou o céu, fechado, escuro e indiferente. Estremeceu., sentindo-se subitamente só. “Que parvoíce!”, pensou, “Já fiz este caminha tantas vezes! Para o que me havia de dar!” De súbito, um ruído de arbustos rasteiros afastados, fê-la rodar sobre si. Não viu ninguém. Esperou um pouco. Nada. Prosseguiu caminho, calculando que já faltaria pouco para chegar. O mesmo ruído de vegetação afastada. Ela voltou-se subitamente, tentando surpreender o que quer que fosse ou quem quer que fosse. Ainda nada. Voltou a retomar a marcha, desta vez, com o coração a bater descompassadamente. Que raio seria aquilo? O que quer que fosse estava a segui-la. Parava ao mesmo tempo para logo retomar a marcha também em simultâneo. A senhora olhou em volta desesperada. O que quer que fosse não se deixava ver com facilidade. Parecia pesado e ágil e…invisível. A senhora, ainda nova, respirou fundo e tentou recompor-se. Puxou a cesta, pendurada no braço esquerdo, mais para junto do cotovelo. Os novelos, aninhados uns contra os outros, pareciam crias adormecidas. A visão deles teve um efeito calmante na mulher. Olhou de novo em redor, para se certificar que não havia nada por perto, e retomou a marcha. O passo apressado parecia fazer eco uns metros atrás. A mulher encheu-se de coragem e parou a marcha resolutamente. Não voltaria a sair dali sem descobrir o estranho mistério. Deu uns passos atrás, olhando cuidadosamente à sua volta. As poucas árvores pareciam petrificadas, enquanto que a vegetação rasteira se calava num silêncio cúmplice. Nada à vista. Estranho. Depois de se certificar que não havia ninguém escondido, ela olhou para o chão à procura do autor daqueles passos furtivos. Foi então que deu com eles, meio encobertos pela vegetação rasteira. Um par de olhos rasteiros olhava-a atentamente, numa tensão que mostrava um sentido de alerta apurado, precedido de uma bocarra enorme aberta que mostrava uma fila de dentes alta e esguia. Pelo tamanho da cabeça, a senhora calculou o tamanho do corpo. Era um bicho enorme, como nunca, até então, tinha avistado. Instintivamente, ela recuou uns passos. O animal deu uns passos em frente também. Agora, ela tinha a oportunidade de o ver na sua verdadeira dimensão. Por momentos, mulher e animal fitaram-se como que medindo forças. Foi então que lhe surgiu a ideia. Olhou para a boca do animal e para o cesto onde repousavam mansos e indiferentes os novelos. Retomou a marcha sempre com animal na sua peugada. Lenta e atentamente, foi deitando os novelos atrás de si, servindo de barreira improvisada entre ela e o animal. O animal não se atrapalhou e foi-os engolindo um a um. Foi assim que chegaram à entrada do povo. A mulher ao avistar uns homens a trabalhar, desviou-se na direcção deles, sempre com os olhos fitos no animal. Chegados ao pé dos homens, a mulher gritou por ajuda. Eles correram solícitos armados com os utensílios do trabalho do campo. Ao depararem com o animal estático, a boca cheia de novelos, não conseguiram dissimular um sorriso. A mulher, de mão no peito, deixou cair a cesta, praticamente vazia, e agarrou-se ao muro de pedra. O animal encarou os homens que apontavam os utensílios à sua cabeça, deu uns passos em frente e… foi o seu fim.
O seu corpo embalsamado pode ser visitado na igreja de Nossa Senhora da Lapa.

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 02:58
Sábado, 03 de Maio de 2008
eregrinação do país – a igreja de Nossa Senhora da Lapa. Esta história vai ser contada pelas minhas palavras, ajudada pela minha memória.
(À minha mãe, pelas histórias que me contava oralmente, quando tinha paciência, e que povoaram parte da minha imaginação…)

Gradiz era uma aldeia pequena, que, com o tempo cresceu, sendo elevada a freguesia, há algum tempo atrás. Ao lado, há uma localidade irmã, a Lapa, da qual esteve separada durante muitos anos, pelos cabeços naturais e, para as populações se deslocarem, tinham de andar muitos quilómetros apanhando a estrada nacional ou atravessar os mesmos. Há alguns anos atrás, a tão desejada estrada foi aberta, ligando, definitivamente, as duas populações. Pertence a esta última a história que vou contar. Esta história, com o tempo, foi-se espalhando, tornando esta localidade mais um dos destinos de peregrinação

O frio era cortante, mas a menina parecia nem parecia senti-lo. Protegida pelo lenço áspero na cabeça, as camisolas de lã sobrepostas, no cimo das quais repousava o xaile escuro, as pernas protegidas pelos saiotes e a saia, juntamente com as meias e as botas, a pequena trabalhava cuidadosamente. No alto da lisa colina rochosa, olhou distraidamente o rebanho que, mansamente, pastava à sua frente, para lá da fogueira, que crepitava alegremente. Tudo em ordem. Em redor, não se via ninguém. Raramente se via alguém, por aquelas bandas. Só alguns caçadores se aventuravam naquelas paragens, com aquele tempo. Voltou a mergulhar a cabeça na sua querida tarefa. Tão concentrada estava, que não deu pelos passos que se aproximavam apressados. Sobressaltou-se com a voz dura e aguda que cortava os tímpanos. Saltou do grosso ramo, que lhe servia de assento, e olhou o rosto vermelho de ar frio, distorcido pela raiva.
- Com que então é assim que passas o teu tempo? – perguntou-lhe a recém chegada, no mesmo tom azedo.
A rapariguinha olhou para o chão, envergonhada. O seu coração batia apressadamente. A mulher olhou para uma das mãos da garota de onde pendia um comprido rolo de trapos coloridos. Dirigiu-se à pequena e arrancou-lhe os trapos das mãos. Olhou para eles atentamente. Os trapos artisticamente ligados uns aos outros. Calculou o tempo que terá levado a fazer. E repetiu furiosamente, virando-se para a filha:
- É assim que passas o teu tempo?
A menina, de olhos baixos, estava petrificada. E, pela primeira vez, parecia tremer, como se fosse, finalmente, o frio se apoderasse dela.
- Quer dizer que em vez de trabalhares, estás a perder tempo com estas porcarias? – tornou na mãe. - Eu já te mostro o que vou fazer com isto. – ameaçou a mãe, dirigindo-se à fogueira.
A menina, adivinhando as intenções da mãe, gritou:
-Tate, mãe. É Nossa Senhora de Lapa! – gritou a menina, aflita.
A mãe retirou às chamas a boneca que ficara com uma mancha escura numa das faces da boneca.
A mãe, ainda confusa, tentou limpar, se sucesso, o sinal deixado pelo lume. Olhou para a filha sem compreender, quando, alarmada, notou que a filha tinha numa das faces, uma réplica exacta daquela que a boneca exibia. Perplexa, a mãe começou a olhar à sua volta notando situações para as quais não tinha explicação: o gado pastava sempre no mesmo sítio e andava gordo, na fogueira ardiam chamas altas, quando nela não havia mais do que brasas e, agora, a cara da filha, para além da voz da filha que ouvia pela primeira vez.


publicado por fatimanascimento às 04:42
Sexta-feira, 24 de Agosto de 2007
O espelho foi quase sempre para mim uma superfície mágica onde eu via o meu rosto reflectido ocasionalmente, de passagem em qualquer divisão da casa ou de uma casa de banho. Nunca fui, nem sou, uma pessoa que perca muito tempo com a aparência física, embora reconheça que a maquilhagem realça as qualidades do rosto. A minha única preocupação é o peso, sobretudo por razões de saúde, e também estéticas, mas nunca me senti escrava das linhas corporais, e nunca deixei de comer o que me dava prazer, só para manter o que me parecia adequado. Nem as estrias ou o tão proclamado tecido adiposo que, aglomerado em certos locais do corpo, tanto parecem afligir as mulheres. Sempre me senti um pouco diferente, no que respeita a essas preocupações estéticas. Não me perguntem porquê, talvez nem eu saiba a razão… toda a vaidade parece ter sido erradicada do meu ser. Talvez porque sempre achei que fisicamente não era nada de especial, talvez daí o desinteresse por mim própria ou a aceitação total daquilo que sou. Preocupo-me em andar asseada e em ter roupa e calçado confortáveis, mais nada… desde que eles não me façam parecer um balão ou me prendam os movimentos! Desde muito pequena que a liberdade de movimentos é, para mim, fundamental. Uma peça de roupa justa ou de cerimónia, eram uma tortura, e eu evitava vestir. Para além do conforto, as peças de roupa têm também de ser suaves no contacto com a pele, práticas ao vestir, e resistentes. Bastava falhar uma dessas características, para eu nunca mais vestir essa roupa.
Com o meu corpo, cumpro as regras básicas para o manter saudável e é tudo. O cabelo, quase sempre curto, é uma exigência do próprio que é muito seco e estraga-se com facilidade. Não digo que não gostava do meu cabelo dos doze anos, comprido a roçar os ombros e cheio de canudos largos e sedosos, numa fotografia de praia onde excepcionalmente me gosto de rever, mas, como pessoa prática que sou, mantenho-o curto, saudável e penteado. Pelo menos, eu tento… mas também não me preocupo se ele, por qualquer razão alheia à minha vontade, está despenteado. Aliás, gosto de sentir o vento no meu cabelo. Como também tenho pouco tempo para dedicar ao meu aspecto físico, trato só de eliminar os inestéticos pêlos, que aparecem com a adolescência. Mas mesmo estes, por vezes, escapam à escrupulosa busca… tão pouco é, para mim, motivo para deixar de sair à rua.
Uma tarde destas, entrei na casa de banho e olhei-me ao espelho com já há muito não o fazia. Olhei com a tenção o meu rosto, pela primeira vez, desde há muito tempo. Já me havia esquecido de muitas das suas particularidades. Não me refiro à passagem do tempo. Esse está lá! Refiro-me às pequenas características… os meus olhos. Esquecera-me como eles são tão diferentes no inverno e no verão. No Inverno assumem o castanho escuro límpido que, com a primavera, começam a delinear, à volta das íris, um cordão cinzento azulado. No verão, a íris toma reflexos castanhos claros esverdeados sempre rodeados desse cordão cinzento azulado. É como se de uma palete de cores se tratasse, todas elas límpidas e sabiamente misturadas, pelo hábil pintor.
Foi ao olhar profundamente nos olhos da minha carochinha, tão semelhantes aos meus, que eu me lembrei desse pormenor…foi o seu reflexo que me fez lembrar de mim! Também os dela tomam, para além do puro castanho igual ao meu, o mesmo cordão cinzento azulado que limita exteriormente a sua íris. Também os dela tomam essa mesma palete de cores magistralmente misturadas…


publicado por fatimanascimento às 07:15
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