Sábado, 05 de Dezembro de 2009

À minha prima Carmita, filha do "Garralhéu" e da Maria dos Anjos, emigrante na Suíça, cuja infância está tão ligada à minha, assim como a amizade.

 

Perdida no alto de uma volumosa e calva colina arqueada, observava indolentemente a passagem das estações estendidas nos vales abertos à sua volta. Os casebres amontoados à volta da estreita rua principal, protegendo-se instintivamente das agressões climáticas - as chuvas grossas e o impiedoso vento semeado de gelo que assolava aquele sereno cume - acolhiam as numerosas famílias como galinhas aconchegam os ovos. Os serões eram passados à lareira, frente às brasas amortecidas, pobres descendentes das chamas altas que, algum tempo antes, haviam cozido a janta, contando histórias de outras épocas, assanhadas pelos uivos do temporal e o barulho das bátegas contra a frágil vidraça. A memória folgada e o vacilante calor, verdadeira bênção para os pés mal protegidos, preparavam-nos para a longa noite de sonho aconchegante. Lá fora, as gastas pedras da rua principal, vergavam à força da impiedosa água caída do céu. À sua volta, os carreiros lamacentos cediam ao peso da água acumulada que reflectia o frio céu cinzento. O fumo das pequenas e estreitas chaminés era esmagado pelo poderoso vento dominante que ameaçava as alegres chamas crepitantes mais a baixo. A aldeia sucumbia ao negro, gelado peso da noite, para acordar estremunhada e friorenta.

As casas de escura pedra laminada, fechadas à invernia, desabrochavam com o calor primaveril. As pessoas pobres retiravam os animais do curral e apresentavam-lhes pastos fartos de erva tenra; os arados e os animais cediam aos apelos dos campos à espera de serem rasgados e fertilizados. As sementes desciam à terra cantando sob a luz farta do sol. As folhas tenras espreguiçavam-se nos nodosos ramos nus e os dias alargavam-se à preguiça das horas. As pessoas cruzavam agilmente as ruas nas suas vozes cantantes, tropeçando em bandos de crianças que exploravam a rua nas suas ziguezagueantes correrias perseguidoras da bola de trapos e os mais idosos empurravam os bancos para fora das casas, em busca do generoso sol que os embalava no seu morno torpor debaixo do inseparável boné ou chapéu negro, comprado no mercado semanal da pequena vila mais próxima, invariavelmente puxado para os olhos, as mãos descansando sobre a fiel e volumosa bengala de madeira clara e pé protegido por uma redonda e fina borracha negra. Ocasionalmente, passava um outro, vergado sob o peso dos anos, encostado a um ramo grosso, apertado na mão, que parava para cumprimentar o seu companheiro de geração tratando-o alegremente pelo nome.

Os longínquos poentes, vestidos de um laranja-avermelhado, adornavam o baixo céu coberto de promessas. O verão atirava as pessoas para o convívio das ruas. A festa engalanava a aldeia e acumulava os residentes na comprida mesa e na pequena igreja enquanto a música se esticava no ar. O regresso dos emigrantes alegrava e enchia de abraços saudosos os recém chegados. Quase todos estavam ligados por laços familiares mais ou menos compridos. Alguns já se haviam perdido na longa linhagem. Casamentos entre jovens de terras vizinhas davam perdas e ganhos à gasta população. As manhãs acordavam cantando na tonalidade das vozes que repetiam saudações cordiais. A voz de uma rapariguinha de redondos olhos perdidos e cabelos encaracolados que chamava “Ah, ‘inha mãe” na sua bonita e rouca voz grossa. O cheiro do café acabado de fazer, a mesa posta de pão e queijo e o leite em pó magro para misturar à negra bebida escaldante. O café da aldeia mantinha as portas abertas como acolhedores braços estendidos, a todos os que o procuravam no calor das noites, guiados na sua luz forte que o transformava em verdadeiro farol nas ruas iluminadas pela branca luz das noites.

O Outono, nas suas folhas amarelecidas, ganhava fôlego para a confrontação com o impetuoso Inverno. Aproveitava-se a morna luminosidade enfraquecida do verão. Os passos apressavam-se como se receassem algum mau encontro. Os corpos vergavam-se à aragem fria recolhendo-se nos largos xailes de lã escura. As velhas arcas enchiam-se de provisões e das chaminés pendiam os enchidos. A água-pé descansava nos pequenos barris da adega. Tudo parecia a postos para a próxima e mais difícil etapa.

 



publicado por fatimanascimento às 19:59
Sexta-feira, 12 de Setembro de 2008
A minha avó andava aborrecida. O problema era o galinheiro. Havia já algum tempo que eu estranhava a aparência das galinhas: meias despidas de penas e havia uma que andava já meio nua, mostrando a feia pele cheia de altos. No chão daquele rectângulo de rede metálica, havia um colchão de penas. As galinhas metiam dó! Nem no choco elas permaneciam muito tempo, sempre em sobressalto. O problema era um galo que a minha avó se lembrara de comprar, no intuito de aumentar a população galinácea. O efeito produzido fora o contrário: a população não só não aumentara, como apresentava um cenário semelhante ao resultado de uma guerra. A população galinácea andava cabisbaixa, sobressaltada e em estado de alerta permanente. O galo não podia ver as galinhas e salvo uma que lhe fazia frente, embora nitidamente com medo, e apresentando também as sequelas das lutas, todas as outras estavam num estado lastimoso.
- O galo parece que tem o diabo no corpo! – queixava-se a minha avó paterna, olhando o bonito galo que lhe custara os olhos da cara.
Ela andara a namorá-lo durante aquela manhã no mercado. Era um belo espécime: todo emproado, deslocando-se majestosamente no pouco espaço de que dispunha, de alta crista vermelha bem direita no topo da pequena cabeça, e todo vestido de cores bem garridas. A mistura das cores com que se vestia atraía a atenção dos que passavam.
- O melhor é acabar com o problema de uma vez por todas! – aconselhava o meu pai, impressionado com aquela violência e o espectáculo que se descortinava do lado de fora da capoeira. – Aliás, nem sei do que estão à espera.
- Ora, do que havia de estar à espera? Que o teu pai arranje um tempo para o matar! – sentenciou a minha avó, enquanto os seus olhos apaixonados acompanhavam os movimentos do galo que parecia atento à conversa deles, tentando descortinar, através daquela língua estranha, utilizada pelos humanos, sorte que o esperava. Do meu canto, um pouco afastada daquele cenário de conversa, eu observava aquele bicho cujo comportamento era, no mínimo, estranho. Parecia desprender-se dele uma espécie e ódio inteligente, de que só alguns humanos são dotados. Olhando-o mais de perto, e acompanhando aquele ataque, cuja incompreensível fúria se manifestava de tempos a tempos, sempre que uma descuidada e arredia galinha se atrevia a aproximar do recipiente da comida.
Ficou decidido, após um julgamento sumário, a sentença de morte do galo. O meu pai viria ajudar assim que tivesse oportunidade. O meu avô duvidava da sua capacidade para imobilizar aquele animal. Calhou num dia de folga. Fomos todos. Tudo estava a postos e o meu avô, recém-chegado da horta, resolveu que ele daria bem conta do recado. O meu pai, embora desconfiado, limitou-se a deder-lhe o lugar. Ficámos todos, de longe, a assistir ao badalado fim do galo. Malga pronta, faca afiada, pescoço do galo torcido para controlar a força diabólica. O meu avô, debruçado nas pernas sobre o animal, começou a tarefa. A minha avó fugira, voltando as costas à morte do animal querido, mostrando a sua pena com algumas palavras. O meu pai e o meu avô irritaram-se:
- Mas quer ou não o animal morto? – impacientaram-se eles. – Tem é de escolher entre as galinhas e o galo.
- Vá lá! Acabem lá com isso. – pediu ela, ainda impressionada com a ideia de ver desaparecer o vistoso animal.
Assim foi. O sangue do animal começou a escorrer para a alva taça, tingindo-a de vermelho vivo, enquanto o animal estrebuchava. A determinada altura, o animal, em toda a sua força, libertou as asas dos pés do meu avô, (que afrouxara a força com que o segurava), e que exagerara no corte e ficara com a cabeça dele na mão. O mais estranho de tudo, foi vê-lo correr às curvas, e sem cabeça, pelo terreno que circundava os currais. O meu pai e o meu avô precipitaram-se atrás dele, evitando que o almoço fugisse da estreita tira da pequena quinta. Já cansados, desistiram e ficámos todos a assistir à estranha dança do animal sem cabeça. Levou alguns minutos até a força abandonar totalmente aquele estranho e elegante corpo colorido, e cair, finalmente, por terra. Ficámos ainda um pouco parados, chocados com a insólita cena a que acabáramos de assistir. Finalmente, o meu avô pegou no corpo inerte e entregou-o à minha mãe, para que começasse a difícil tarefa de depenar o animal. Falou-se deste acontecimento durante muito tempo, tirando dela as mais diversas conclusões.


publicado por fatimanascimento às 10:54
Segunda-feira, 05 de Maio de 2008
(Ao meu pai, Francisco Dias…)

Estava de serviço numa das noites que se seguiram ao 25 de Abril. Torres Novas era uma pequena vila, com um quartel aninhado na extremidade da parte baixa da localidade, ocupando uma boa área dela. Todos nos lembramos daqueles dias de insegurança que se seguiram ao rebentamento da revolução. Todos nós tínhamos medo. Afastados do fulcro dos acontecimentos, ninguém sabia bem quem estava à frente do país e o que pretendia. Os dias eram de inquietação e as noites de medo. Ninguém se atrevia a sair à noite. O meu pai, agente da PSP, tinha de sair para fazer a sua patrulha. Naqueles tempos, os polícias eram poucos e faziam a patrulha a pé e sozinhos. Foi o que aconteceu naquela noite ainda fria de Abril. Ele estava sozinho na rua. Ele entrou à meia-noite. Como sempre acontecia, ele chegou mais cedo e, após a troca de algumas palavras com os colegas sobre os acontecimentos do dia, ele saiu calmamente para sua ronda. Desceu a estreita e curta rua, que saía da praça 5 de outubro, seguiu sempre em frente, respirando o ar ainda frio da noite. Passados momentos, ele ouviu tiros vindos do lado do quartel. Os colegas tinham razão, a agitação vinha daquele lado. Os tiros repetiram-se a uma velocidade atroz. O meu pai estremeceu. Que raio se passaria ali? A vila, sempre calma, não era dada a problemas. Só poderia ser alguém ligado ao quartel. Parou e pôs-se à escuta. O barulho parecia ter desaparecido. Talvez já tivesse passado. Continuou a caminhar, sempre atento a qualquer movimento ou ruído suspeitos. De repente, os tiros prolongaram-se rasgando a noite. Uma metralhadora, pensou. Parou, atento, o coração a bater descompassadamente. Precisava urgentemente de localizar os tiros. Os tiros pareciam rodeá-lo. Olhou para a sua pistola. Nunca se servira dela. Passou a mão pelo coldre, onde estava a arma enfiada. Lentamente, retirou-a, sempre à escuta. A rajada parecia vir do seu lado esquerdo. Pelos disparos, parecia ser uma só arma. Uma metralhadora., pensou, Quem andaria por ali acompanhado de uma metralhadora? Só poderia ser um militar. Onde teria arranjado a metralhadora? Com que ordem a teria trazido para fora do quartel? Todas estas questões assaltavam-lhe o espírito ansioso. Enfiou a arma de novo no coldre e continuou a andar, regulando-se pelo ruído que, de tempos a tempos, rasgava o ar. Não havia sinal de grande movimentação, pelo que deveria ser só um militar a celebrar a revolução. Continuou a sua ronda. Os tiros estavam agora mais perto. Estacou, novamente. "Malditos militares", pensou com raiva. Os tiros ecoavam pela baixa da vila. As janelas fechadas pareciam desertas. Caminhou corajosamente em frente, receoso do que poderia encontrar pela frente. Antes de chegar ao cemitério, cortou à sua esquerda, na ponte rústica que passava despercebida a grande parte das pessoas, direito ao Félix Carreira e continuou atraído pelo ruído. Que se passa?, pensava ele curioso e cauteloso. Continuou sempre em frente, contornou a Casa de Saúde até à ponte do Raro. Era do lado do quartel. Olhou à sua volta e nada viu. Que raio, pensou, As rajadas calaram-se. Quando se preparava para passar a ponte, uma voz autoritária fez-se ouvir. “Alto!”, e reconhecendo a farda da PSP, continuou “Dê-me a arma ou limpo-lhe o sebo!” O meu pai voltou-se lentamente, encarou o homem, e a metralhadora apontada ao seu peito. “Há algo de errado no homem”, pensou o meu pai. O outro de farda militar fez um gesto de impaciência com a metralhadora. “Bom”, pensou o meu pai, “Agora, ele limpa-me mesmo o sebo”. Retirou lentamente a arma do coldre, sem tirar os olhos do homem, baixou-se e atirou-a para longe dos seus pés. O outro, um pouco bêbado, pareceu agradar-lhe sentir-se obedecido. Parecia saborear o seu acto. Foi esse momento que, obedecendo ao seu instinto, ele desatou a correr, aproveitando a obscuridade da rua. As botas pesadas da tropa seguiram no seu encalço, arfando debaixo do peso da metralhadora e do álcool que consumira. O meu pai, aproveitando a vantagem, cortou numa das travessas em direcção ao posto da PSP. Bateu à porta que permaneceu fechada. Insistiu. O ruído seco das botas da tropa aproximava-se rapidamente. O meu pai contornou a relojoaria e subiu na direcção do castelo. Passou en frente à GNR e bateu à porta em busca de abrigo. Olhou a porta verde cerrada. Guiadas pelo ruído das pancadas, as botas orientaram-se na sua direcção. Desesperado, o meu pai desceu a colina do castelo em direcção à avenida. As botas seguiam-no, atentas ao mínimo ruído. Aproveitando a obscuridade o meu pai evitou a ponte e mergulhou na poluição do rio Almonda, nadando bruços num silêncio que só ele consegue. Chegado à margem, olhou para trás e viu a figura alta a olhar em seu redor, confusa com o seu súbito desaparecimento. Manteve-se agachado, até ver a farda afastar-se, sempre acompanhado da sua fiel arma, olhando sempre em redor, cautelosamente, à espera de um deslize do perseguido. “Um autêntico militar em situação de combate”, pensou o meu pai, avaliando-o. Após um certo tempo, o meu pai saiu do seu esconderijo e correu apressadamente em sentido contrário ao do militar, direito a casa.
Naquela noite, a minha mãe acordou sobressaltada com as rajadas de metralhadora. De pé, os pés descalços em cima do bidé, ela seguia atentamente os ruídos de arma de fogo, pensando, angustiada, no marido, na rua, enfrentando sozinho as balas que cortavam profundamente a noite.
05:00 horas da madrugada. Foi o cheiro que me despertou nessa noite. O meu pai despiu a roupa nauseabunda, tomou duche enquanto a minha mãe se dirigia apressadamente ao tanque com ela. O cheiro era insuportável e manteve-se dentro de casa ainda uns dias, para nosso desgosto.
06:00 horas. O meu pai vestiu-se novamente e preparou-se para sair. Sossegou a minha mãe dizendo que iria para o posto e que não poderia ficar em casa, sabendo que o colega estava sozinho do posto. Ele sabia o perigo que ele corria e era preciso avisá-lo. Nós não tínhamos telefone. Foi então que a campainha tocou. Entreolhámo-nos. Quem seria àquela hora? O meu pai foi abrir a porta. Entraram os colegas. “Graças a Deus! Estás aqui!”- foi a exclamação geral. O alerta fora dado pouco depois da perseguição ao meu pai. A GNR e o colega do meu pai que estava de plantão, telefonaram para o quartel, relatando o acontecimento, e pedindo-lhe ajuda. O colega do meu pai informou-os que o meu pai andava sozinho na rua, e que poderia apanhá-lo pela frente. Os militares entraram em acção, dispersaram-se numa busca ao homem, quando encontraram a pistola do meu pai no chão. O posto foi prontamente avisado do achado. A ordem é que se mantivessem quietos até os militares apanharem o colega. O que não levou muito tempo. Levaram-no para o quartel. Sabendo da captura do militar e ainda alarmado pelas pancadas na porta, o colega de plantão no posto da polícia chamou alguns colegas e deram uma volta pela vila em busca do meu pai. Não havia vestígios dele. Finalmente, ganharam coragem, meteram-se dentro do carro de um deles e vieram a casa procurá-lo.
10.00 horas da manhã. Os militares entregaram-lhe a arma, com um pedido de desculpas, explicando à PSP, e ao meu pai, o que sucedera. Os militares que conheciam o autor de tal desacato, disseram ao meu pai, que a sorte e o perigo dele estivera na bebedeira do militar que o havia perseguido. A sorte porque a bebida toldara-lhe o espírito e o perigo porque ele poderia, a qualquer momento, ter disparado a arma, matando-o. Era um bom militar, muito bem treinado, mas o meu pai conhecia melhor a localidade que ele. Os militares estavam chocados com o que sucedera, mas visivelmente mais chocados com o que poderia ter acontecido.


publicado por fatimanascimento às 02:53
Terça-feira, 29 de Maio de 2007
Olho o meu pai com ternura, registando dele tudo aquilo que ele não era outrora... os passos hesitantes, o equilíbrio frágil, o tremor acentuado das mãos, o corpo encolhido e mirrado, rodeado na cintura por um cinto muito apertado à volta de um cós largo, as costas ligeiramente arqueadas, a cabeça coberta por uns cabelos brancos resistentes que lhe encobrem pequenas superfícies de pele luzidia que reflectem a luz solar, a pele enrugada, os olhos meigos, atentos e inteligentes, a voz frágil, calma e hesitante, denunciando as confusões mentais que lhe perturbam o espírito, a audição e o olhar gastos pelo tempo como se nada para ele constituísse uma surpresa já, as atitudes revelando a necessidade de ajuda e de uma outra presença física por perto, o alheamento frequente ao que o rodeia, a memória que o vai traindo, a teimosia infantil, o desprendimento, a reacção lenta, a atrapalhação e o pânico patenteados até nas situações mais simples, o espírito curioso e recto que o faz devorar O Correio da Manhã ainda diariamente, nos momentos lúcidos, a paz que se desprende de todo o seu ser, a sua entrega total, cândida e curiosa às situações desconhecidas que se lhe deparam, tornam-no vulnerável como uma criança num mundo agressivo e violento... dá vontade de o proteger! Olho para trás e lembro-me deste homem outrora e do que ele representava para mim e da importância da presença dele na minha vida... enquanto criança, adolescente e jovem. Enquanto criança, tenho poucas imagens dele gravadas na minha memória, tenho uma em particular, dada a gravidade da situação. Lembro-me de, uma tarde, subirmos lado a lado a ladeira dos canitos e, ao chegarmos ao topo, para fugir ao inusual tráfego intenso dessa hora, atravessámos na curva e tentámos, a custo, lutar contra o fluxo do trânsito que se aproximava, na curva, perigosamente de nós. A dada altura, apareceu uma camioneta que nos ia esmagando contra o alto muro que desenhava a curva. O meu pai, aflito, percebendo o erro que cometêramos, pegou em mim, que ia à sua frente, encostou-me àquela imensa parede áspera e tapou-me com o seu corpo, deixando o espaço necessário como se tentasse, desse modo, afastar aquele longo e pesado veículo de mim. O seu amor por mim nunca mais esteve em causa... O primeiro contraste flagrante é a altura... Lembro-me de um homem alto, de cabelo escuro semeado, desde muito cedo, de cabelos cinzentos, uma face simpática e agradável, independente, inteligente, com uma vida interior intensa e imensa, na qual se refugiava nos momentos de lazer, mesmo quando parecia dormitar, aventureiro, com sentido de humor, de uma rectidão moral vincada herdada do seu pai, e que me foi transmitida nos genes... insatisfeito, ouvinte calmo e atento, orgulhoso, generoso, leal... revoltado com as injustiças próximas e distantes, inimigo da mentira, concentrado no que fazia... uma fonte de força e segurança, uma pessoa com quem me entendia, embora, por vezes, se abrisse diante de nós o fosso da diferença de gerações, apaixonado naquilo que defendia e facilmente irritável quando percebia a resistência a ideias tão simples e fáceis de entender... o homem a quem devo aquilo que sou e como sou, o homem que sempre acreditou em mim e me apoiou, mesmo quando as dúvidas o assaltavam e o levavam a hesitar... protegeu-me sem me sufocar, acompanhou-me sem me apontar o caminho, orientou-me respeitando sempre a minha privacidade e os erros e estimulando-me sem me obrigar a nada... eu herdei muito dele. O amor pela escrita e pela fotografia, (quando encontrei o equilíbrio interior que me levou a escrever!), o que ele, por seu lado, nunca parece ter conseguido, devido, em grande parte, a um casamento conflituoso, e a uma mulher que nunca o entendeu e lhe destruiu grande parte do que realizou devido a preconceitos muito em voga na época e ainda hoje, a medos infundados,... que não deixam as pessoas interpretar inteligentemente aquilo que se lhes depara. Não admira que tivesse desistido...


publicado por fatimanascimento às 06:11
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