Quinta-feira, 29 de Janeiro de 2009
Era uma amizade de quase quatro décadas. A imponente elevação, deitada no sentido da costa da província vizinha, protegia a imensa planura dos fortes e húmidos ventos marítimos. Não se conhecia bem a sua história. Ela também não sabia contá-la bem, perdida já nas suas imensas e enevoadas memórias. Ainda assim, ela guardava-as para entreter a sua jovem amiga, nas tardes calmas, longas e quentes de verão, temperadas de estridentes cânticos de cigarras. A sua jovem amiga, guardiã do rés-do-chão direito do alto e elegante prédio que enfrentava orgulhosamente os dias e as noites nas suas roupas gastas e rotas, apresentava um ar miserável de doce menina pobre. A única riqueza era a vista que se alongava até à enorme e fiel Serra d’Aire, afundada no seu quieto sono eterno, e cuja crosta se coloria de um suave tom azulado nas tardes em que as condições atmosféricas lhe eram favoráveis, substituindo a sua habitual e já gasta capa cinzenta. Era para ela que se voltava a porta traseira daquele andar. Toda ela feita de madeira, pintada de branco, aberta ao meio em duas altas e estreitas vidraças, separadas por uma faixa de madeira onde encaixavam, cegas por um cortinado fino que filtrava a luz e os olhares indiscretos, e tapadas por uma porta articulada da mesma madeira, que se prendia na argola cravada na madeira, uns bons centímetros cima do puxador da porta, que rodava à entrada ou à saída. Essas vidraças eram os olhos da estreita e comprida cozinha. Talvez por sentir a fragilidade desse obstáculo às intenções obscuras de qualquer semelhante, a porta mantinha-se teimosamente aberta, com a escura, cinzenta e grossa chave, cuja ponta terminava numa argola, em forma de asa de borboleta, já ameaçada pela ferrugem, sempre pendurada do lado interior. Dias e noites, porta e serra viveram numa entranhável cumplicidade e sã convivência, que se manteria por muitos anos. A serra velava majestosamente pela fragilidade da amiga, mantendo-se atenta a todos os passos e movimentos realizados nas suas imediações, tentando descortinar as intenções por trás de cada indicador dobrado que batia na vidraça; a porta velava pelo seu bem-estar, animando-a nas intempéries e nas valas que os homens cavam no seu peito, em nome dos blocos retirados que lhes auferem o tão precioso dinheiro, (ainda que ameaçando aplaná-la com ambição desmesurada), desfigurando-lhe o rosto com golpes implacáveis. Era desses estranhos seres, movimentados por duas pernas, e por valores estranhos, que elas se procuravam defender… A frágil porta nunca se abriu a estranhas mãos, encontrando na enorme dor da sua gigante amiga, a única dor da sua existência.


publicado por fatimanascimento às 23:42
Segunda-feira, 21 de Abril de 2008
(Ao meu avô materno, João do Nascimento, pela pessoa que foi…)


As ruas estreitas calavam os gritos. Não se percebia bem se seriam gritos ou grunhidos ou latidos ou uivos, e, após alguns anos, os habitantes ainda não conseguiam distinguir os ruídos de forma a identificá-los. Já se haviam habituado aos sons estranhos que transpiravam das grossas paredes de pedra e da janela comprida e estreita, de vidros sujos, e enferrujadas grades, três ao todo, encavalitada num dos lados, e ao cimo da parede do rés-do-chão do pequeno solar. Do lado oposto, outra janela igual decorava a mesma parede. Ao centro, uma porta alta e estreita, de madeira sólida, escondia o mistério. Ninguém sabia ao certo o que se passava dentro daquelas paredes. Os gritos acompanhavam os aldeãos pela rua fora quando, de enxada ao ombro, ao romper do dia, se dirigiam aos seus terrenos e, depois, no regresso. Mas nem sempre os estranhos ruídos se faziam ouvir, como se a calma se devesse ao cansaço e ao sono de quem os produzia. O que eles mais estranhavam e comentavam entre si, ao princípio, era os ruídos humanos que se adivinhavam por trás daqueles sons indistintos. As crianças, que desciam a rua, pela mão das mães, olhavam receosas aquela janela, enquanto escutavam os ruídos de palha remexida e os longos lamentos. As mães sorriam-lhes tranquilizadoras e eles, passado algum tempo, já se habituavam aos estranhos ruídos. Os rapazes mais turbulentos, olhavam com aparente destemor aquela janela, chegando a aproximar-se da inatingível janela, como que desafiando o perigo escondido. Alguns faziam até apostas entre si, para ver quem conseguia aproximar-se mais dela. Alguns chegavam mesmo a perder os preciosos haveres em tais aventuras, regressando para reclamarem, vitoriosos, o seu prémio. Mais tarde, aprendiam a respeitar aquele que haviam considerado, um dia, uma ameaça, e deixariam de dar importância. Nunca ninguém vira o autor de tais gritos. A porta só havia sido transposta por um caçador muito conhecido na aldeia e que, aparentemente, e dadas as horas das visitas, parecia tratar daquele ser desconhecido. Só ele, para além da família, conhecia o mistério escondido na loja daquela casa. Todas as manhãs e, nos finais de tarde, a figura alta, esguia e ágil do caçador, muito conhecido e respeitado na aldeia, para onde fora viver, após o casamento. A sua estatura, o franco rosto estreito e longo, os inteligentes olhos encovados e pequenos, a sua natureza simples e aberta, valera-lhe a amizade daquela gente simples. Nunca lhe perguntaram o que se passava por trás daquelas paredes, mas também sabiam que ele jamais responderia. Nem mesmo a mulher e os filhos viriam a conhecer o segredo. Fora convidado pelo dono do pequeno solar, e, a partir dali, nunca falhara um só dia a sua tarefa. O efeito que tinha sobre a criatura era espantoso. Dir-se-ia que os dois se entendiam para além das palavras.
Ora, uma tarde, a filha mais velha do caçador, passava na rua, junto do muro oposto à casa, quando ouviu uns ruídos mais acentuados. Dir-se-ia que a criatura estava mais agitada do que de costume e os longos lamentos pareciam querer deitar abaixo as paredes que o prendiam.
- O que se passa? - pensou para si a pequena, estremecendo, enquanto deitava um olhar furtivo e amedrontado à janela, como se tivesse medo que a criatura fugisse por ali, a qualquer momento e tivesse de o enfrentar. – O pai já teria visitado aquele ser solitário? Àquela hora já era costume. Então porquê tamanha agitação? E porquê aquele profundo e longo lamento que cortava a alma?
De repente, deu um salto. Uma mão, de dedos esguios, intensamente peluda, em tudo semelhante à de um humano, acabava de estilhaçar o vidro e agarrava a grade do meio. Uma testa igualmente peluda, seguida de um cabelo que mais se assemelhava à continuação do pelo da cara, surgiu, por momentos, no pequeno rectângulo. Dulce deixou cair o cesto da fruta que levava no antebraço. As maçãs espalharam-se pelo chão. Ela pareceu não dar por nada. Ficou a olhar estarrecida para aquela janela. Olhou à sua volta. Não se via ninguém. Ela atrasara-se e a noite caía sobre a rua, como se quisesse manter o segredo daquela janela. Ela aproximou-se mais, atraída pela revelação súbita do estranho do mistério. De repente, um par de olhos muito abertos, revelando um atraso mental profundo, e um nariz grosso e saliente pareceram farejá-la. A criatura, alarmada, com a presença inesperada daquela miúda de oito anos, pareceu ficar excitada. Não cessava de saltar, tentando, desesperadamente, manter-se agarrada à grade de forma que pudesse manter a visibilidade. Dulce continuava petrificada a olhar a repentina imagem. Um barulho pareceu acordá-la do seu espanto imobilizante. Uma voz masculina tentava-o acalmar e, pelos ruídos, desviar a atenção do ser da janela. Outras vozes se juntaram à primeira. Até que os gemidos, de quem parecia usar da força para imobilizar o ser, deu lugar a um silêncio ofegante.
Dulce agarrou o cesto, apanhou à pressa as maçãs que estavam mais perto dela, e afastou-se, apressadamente, da janela. Confusa com tudo quanto presenciara, ela correu para casa, subiu os degraus, abriu a porta com violência e estendeu o cesto à mãe, refugiando-se, logo de seguida, no seu quarto. A mãe não lhe fez perguntas. Dulce guardaria, durante muito tempo, aquela imagem na sua memória. Memória essa que perduraria muito para além da morte daquele ser, ignorado da sorte, enquanto viveu.
Na janela, um rosto largo e barbeado, olhava atentamente a rua pela janela. Não se via ninguém. Mais descansado, colocou uma tábua de madeira a tapar o buraco do vidro, por onde a aragem, daquele frio e cinzento entardecer, entrava.
- Ainda bem! – pensou, enquanto se afastava. E, depois, em voz alta, voltando-se para alguém – Temos de mandar arranjar aquele vidro.
E afastou-se, deixando, atrás de si, uma criatura dobrada sobre si própria, embalando-se continuamente, como que reconfortando-se na sua dor. Olhou para trás, antes de fechar a porta. A criatura não abandonara a sua posição. Fechou cuidadosamente a porta, como se tivesse medo de o acordar, e subiu as escadas, rumo à cozinha de onde se desprendia um cheiro agradável a comida.

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 08:50
Quarta-feira, 16 de Maio de 2007
Todas as minhas memórias estão ligadas àquela casa, não me lembro da outra, dos arredores de Lisboa. Empoleirada na zona alta da pequena vila, batida pelos ventos fortes e trovoadas violentas, livre de multidões e de carros... Não é tanto a casa em si, mas o espaço em redor que ficou gravado na minha alma. Da casa, recordo a frescura do ambiente nos dias quentes de verão e o aconchego nos dias chuvosos e frios de inverno. Era um rés-do-chão direito, voltado no sentido este-oeste, que fazia esquina com outro prédio, também de quatro andares e também distribuídos lado a lado. A escada separava os quatro andares desde a porta da entrada, e dela avistavam-se os vasos semeados nos degraus, desde a entrada do prédio até à altura em que se bifurcava e dava acesso aos dois andares superiores, meio imersos na obscuridade como dois satélites laterais. A porta da rua abria-se bloqueando o acesso à minha porta de casa, pelo que, depois de aberta tinha de se fechar ou encostar para entrarmos sem problemas. Quando eram várias pessoas, tinham de fazer uma verdadeira ginástica para encostar a porta, tendo mesmo algumas pessoas de subir alguns degraus para entrar na sala. A minha caixa de correio metálica era a primeira do lado da minha porta. Rasgada na largura da parte superior, ela tinha meia dúzia de curiosos buracos no fundo, também dispostos horizontalmente, e pelos quais se espreitava a possível correspondência. A sala quadrada estava mobilada de forma simples. Os quatro sofás distribuídos pelas quatro paredes, o grande virado para a porta e para a pequena mesa de tampo esverdeado com tira negra à volta, e um protuberante ventre metálico carregado de revistas já antigas, parecia perdida no meio do tapete cor de tijolo. À direita, a janela tapada com uns cortinados brancos compridos e direitos, estavam limitados nos dois lados por outros de tecido grosso colorido, que caíam direitos. Ao meio da casa, havia uma outra, também quadrada, que dava acesso a todas as outras divisões e dependente da iluminação destas. Era nesta divisão que se encontrava a mala oriental que o meu pai trouxe de Macau. Tratava-se de uma arca rectangular e alta, cravejada de pioneses abobadados dispostos de forma artística. Era a arca dos meus sonhos! Quando ela se abria, cheirando fortemenete a cânfora, a minha imaginação voava de encontro a destinos desconhecidos... adorava espreitar os recantos, gavetas, gavetinhas e reentrâncias... a cortina que protegia os fatos muito direitos como militares numa parada... os lenços sedosos... e outras preciosidades orientais como fotografias meio amareladas, tiradas pelo meu pai aquando sua estadia de quatro anos e meio em vários pontos daquele pedaço de terra na ponta oriental da China. A olhar para ela embevecida, toda alva, a minha pequena estante com livros que me ofereceram, e, mais tarde, que fui adquirindo com algum dinheiro que me davam ou com a minha magra mesada. Ao meio, uma mesa em forma de barril aberto de três andares onde eu colocava as revistas que queria esconder da inspecção periódica da minha mãe, evitando assim uma lição de moral sobre os desperdícios de dinheiro em revistas de música e uma lição de poupança doméstica em tom despeitado. A sala de jantar, encostada à sala de estar, era a única divisão rectangular com uma mobília castanha clara composta de uma mesa quandragular com alongamento e dois móveis baixos, um deles com uma cristaleira ao centro. Estes dois passavam a vida conferenciando por cima da mesa que lhes tapava teimosamente a vista com uma colorida jarra alta cheia de flores artificiais, que eu detestava mas que faziam um arranjo bonito multicolor. A janela em frente da porta estava coberta com uns cortinados claros e finos limitados nos lados por outros de um azul forte. Era a divisão menos utilizada da casa e estava sempre impecável. A estreita casa de banho rectangular, tinha uma banheira comprida do lado direito da entrada e, ao fundo, a retrete e o bidé, lado a lado, e do lado esquerdo, o lavatório do qual se podia vislumbrar o telhado da garagem através de uma janela pequena com mosqueteiro. O quarto dos meus pais, entre o meu e a casa de banho, tinha duas mesas de cabeceira e uma cama virada com os pés para a janela de portadas interiores de madeira e, do lado direito da porta uma cómoda virada para o guarda-fato no extremo oposto da parede. O meu quarto, era composto de dois divãs encostados a paredes opostas, aproveitando os lados livres deixados pela janela, a cujas extremidades foram colocadas astuciosamente os pés e as cabeceiras de duas camas do quarto de uma vizinha da minha idade que haviam sido desmanchadas e substituídas por outras. Na parede do lado direito da porta, por cima de um dos divãs, uma prateleira que havia acompanhado as cabeceiras e os pés das camas, de onde espreitavam as minhas bonecas em pé ou sentadas. O luar, trespassando as vidraças, embatia em duas portadas de madeira cinzenta interiores. Frente a ela, e encostada à parede oposta do quarto, três malas encavalitadas umas em cima das outras e tapadas por um pano ao jeito de arca, guardavam religiosamente a roupa do corpo, ora da estação quente ora da da fria. A cozinha entalada entre o meu quarto e a despensa, (a única estreita divisão interior), de forma rectangular, tinha pegada à parede oposta à da entrada os armários suspensos da parede e o armário rasteiro das panelas e tachos por baixo da bancada, à esquerda, meio encoberto pelo frigorífico, e o do gás, mais à frente, perto do fogão. Este emploeirado, qual pássaro em seu ramo, em cima de uma bancada de mármore baixa parecia pronto a abrir a asas a todo o momento e a desaparecer chaminé acima... Ao lado deste, a porta que dava para o quintal. À esquerda, o tanque da roupa, em cima de um poleiro de polido de cimento cujo acesso se fazia do primeiro degrau da porta e, em frente, o meu quadrado de terra a que chamávamos quintal, com uma pereira e que era cavado periodicamente pelo meu pai, nas horas vagas, abrindo caça à ervas daninhas que invadiam o quintal. Este quadrado multiplicava-se por quatro estendendo-se todos uns ao lado dos outros. Depois destes, uma garagem encostada à casa de banho da minha casa com uma largo e comprido caminho de acesso. Na outra extremidade, o portão que saltava sempre, evitando assim o ruído desconfortável que fazia sempre que se abria. Do lado oposto dos quintais um outro pequeno que dava para o carreiro de terra cheio de poças sempre abertas pelas chuvas dos invernos e no qual cabia um carro de cada vez... do lado de lá, estendia-se o olival com oliveiras pequenas e acolhedoras onde brinquei muitas vezes às casinhas. Frente aos quintais, e do outro lado da rua do portão grande que dava acesso à garagem um espaço coberto de figueiras e oliveiras que cobriam o terreno livre ao longo do bairro. Antes de lá chegar, o poço, o mistério de um poço que nunca conheceu água, pois nem a da chuva retinha no fundo. O meu prédio, assim como outros das redondezas e as vivendas, devia ter feito parte de um terreno pertencente à capela de Santo António que seria cultivado pela ordem se S. Francisco Xavier e aquele poço, fazia talvez parte desse terreno... Do lado das salas da minha casa, ficava um largo rectangular, cujo lado direito era ocupado pelo terreno daquela igreja, onde hoje ainda se erguem as tendas da festa. A minha vida está muito ligada a esta igreja que eu conheço como as minhas mãos e com a cumplicidade de um casal de velhotes, e antes deles outros, que sempre admiraram a minha paixão por aquela capelinha... Da janela do meu quarto, dominando o resto da paisagem, erguia-se triunfante a serra d'Aire, uma imensa mancha azul que, nos dias mais nostálgicos, eu olhava longamente, imaginando que era um gigante dinossauro há muito adormecido e petrificado...


publicado por fatimanascimento às 00:34
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