Terça-feira, 10 de Junho de 2008
A manhã, regada por um sol gelado, convidava ao passeio que tinha decidido realizar, naquele dia. Era o terceiro da minha curta estada em Paris, da semana que se seguiu ao Natal de 2006. Era o dia de visitar o Cemitério do Père Lachaise e, sendo pouco amante de cemitérios, escolhera o penúltimo dia, para o percorrer. Não deixara a visita para o último dia, não fosse estar fechado. Era um local de visita obrigatória, a minha melhor amiga fizera-me prometer que lhe traria fotos. A campa visada era a do Jim Morrison.
À entrada, consultei a planta daquele imenso cemitério, semeado de campas e jazigos bem alinhados, como flores dispostas simetricamente em canteiros primaveris.
Sempre guiada mentalmente pela planta, percorri as largas avenidas daquela aldeia silenciosa, tendo sempre o cuidado de não perder a orientação. Impossível! Olhei desesperada à minha volta, nem uma alma por ali se deslocava. Até mim, chegavam vozes afastadas de pessoas perdidas, como eu. Olhei de novo, para ver se localizava as vozes que morreram, subitamente. Ninguém. Continuava sozinha. Segundo os meus cálculos mentais, deveria estar muito perto da buscada campa. Olhei em redor. Numa das avenidas, acima de mim, caminhava uma jovem que consultava atentamente o mapa que trazia consigo. Caminhava com aquela intemporalidade que caracteriza certas pessoas, em comunhão com o mundo e o sol que inundava aquele parque silencioso. A figura frágil, esguia e elegante desapareceu, subitamente, por detrás de um dos imensos monumentos fúnebres, para voltar para trás. Desisti da ajuda. Procurei eu mesma a campa. E encontrei-a. Pequena, frágil, discreta, encoberta por um enorme jazigo, de uma família desconhecida. Poderia ter acesso a ela por dois lados, um mais estreito e outro mais largo. Fotografei-a de ambos os lados, rodeando sempre o descomunal e inoportuno jazigo. Fiquei a olhar longamente aquela campa, surpreendida, por aquele homem estar reduzido a uns míseros centímetros de terra, repleta de ramos de flores secas e de mensagens dos seus inúmeros admiradores. Ao meu lado, a curta distância, descansava a do célebre músico e compositor, Chopin. Esta, mais requintada, passava menos despercebida, bem alinhada com outras campas. Foi, então, que descobri, perto de mim, a jovem que, imperceptivelmente, poisara ali. O seu recolhimento, frente à campa do admirável compositor do século XIX, fez com que eu me deslocasse o mais levemente possível, para não a perturbar. Quando pareceu acordar do seu recolhimento voluntário, entabulei conversa com ela. Simpática, ela explicou, no seu castelhano natal, que era mexicana, estava há alguns semanas em Paris, e que regressava já dali a poucos dias. Era pianista e, a sua admiração por Chopin, levara-a, naquele dia frio, a buscar a sua campa, para ali rezar. Antes, quando a avistara pela primeira vez, ela invertera a sua marcha para visitar uma de outra personalidade do mundo da cultura, que ela também admirava. Seguira-se-lhe a de Jim Morrison, onde me encontrava. Custara-lhe conseguir esse momento de liberdade, mas arranjara-o, no único que teve livre, desde que chegara à capital francesa. Continuámos a conversar, enquanto caminhávamos em direcção à saída. Despedimo-nos. Não trocámos telefones, porque sabíamos que, ao preço a que estavam as comunicações, não telefonaríamos. Não trocámos moradas, uma vez que ela, na sua digressão, nunca passaria muito tempo na mesma terra. Nunca mais a vi. Mas ela prometeu-me que nos haveríamos de encontrar um dia, ainda que por breves momentos. Não sei o local, não sei a data, mas acreditei na misteriosa jovem mexicana. Talvez numa futura digressão pela Europa. Acredito que, naquela rapariga sensível, há um talento único. Senti isso nela. E raramente me engano!


Fátima Nascimento




publicado por fatimanascimento às 11:58
Domingo, 04 de Maio de 2008
(Esta foi uma lenda contada pela minha mãe e que parece ter acontecido em Gradiz, a sua terra natal, há muitos, muitos séculos atrás...)
A aldeia ficava no fundo das colinas, cobertas de penedos gigantes e escuros que circundavam o pequeno aglomerado de casas. A suas formas arredondadas deviam-se à água que escorria, desde sempre, por eles, numa camada fina, quase imperceptível ao olho humano. Nos dias de sol, essa torrente fina de água reflectia o sol de uma forma intensa que se propagava por todo o vale. Era por essas colinas que os lobos, nos longos dias de frio intenso, em que a água que cobria os penedos se transformava em gelo brilhante e transparente, desciam à procura do alimento que escasseava nessa época do ano. Os camponeses, privados das suas lides habituais, pela branca extensão de neve que se perdia de vista, viam os animais rondarem as portas e os currais dos animais inquietos com a presença dos indesejáveis predadores, afastavam-nos defendendo-se com os instrumentos manuais da faina agrícola, arrumados nas frágeis arrecadações. Como a aldeia ficava enterrada no meio das colinas que, por sua vez, estavam escondidos pelos bosques quase impenetráveis de frondosas árvores, e, afastada de todos os caminhos principais, por onde se deslocavam, habitualmente, pessoas, dir-se-ia que a única preocupação daquele pequeno e desalinhado aglomerado de casas, era a privacidade. Raramente apareciam desconhecidos por aquelas paragens, pelo que os habitantes viviam calmamente os seus dias, não tendo outra preocupação que a sua sobrevivência.
Num dia de intenso sol, os poucos habitantes foram surpreendidos por um exército enorme que se perdera por aquelas paragens, enquanto trabalhavam as suas terras. Interpelados por aqueles homens vestidos de armaduras e sentados em cima de enormes cavalos, os habitantes ficaram petrificados, limitando-se a olhar uns para os outros, sem saber como reagir naquela situação. O comandante daquele exército já se começava a impacientar com a atitude dos camponeses e começara a levantar a voz como se o problema daquelas pessoas fosse a surdez, quando um imediato lhe chamou a atenção para as colinas reluzentes que os sitiavam. A luz intermitente confundia-os. Rodaram os cavalos e os restantes soldados daquele exército, à semelhança dos seus comandantes, olharam também em volta, mostrando um certo nervosismo. O que se passava naquelas colinas? Que reflexos eram aqueles? Dir-se-ia que um exército escondido esperava o momento certo para abandonar o seu esconderijo, cercá-los e derrotá-los sem dó nem piedade. Confusos com o que viam, o exército, atemorizado, recuava prudentemente, enquanto avaliavam rapidamente a sua situação. À frente, do lado esquerdo e do direito o panorama aprofundava mais os seus temores. Só a retaguarda estava livre, com a ampla floresta testemunha do inglório beco onde se haviam metido. Os reflexos eram, estavam certos, homens cujas armaduras e armas refulgiam ao sol. Eram tantos que não havia esconderijo para todos. Depois, o sol parecia estar do lado deles, uma vez que quase os ofuscava com os seus raios reflectidos um pouco por todo o lado. A intensidade era tal que quase os cegava. Um momento de indecisão trespassou a alma dos comandantes, que se entreolharam cúmplices, procurando descortinar nos seus olhos os pensamentos uns dos outros. Havia unanimidade na decisão. A batalha deles não era aquela. Seguiriam o seu caminho e levariam o exército intacto ao seu destino. Ali, também não teriam qualquer hipótese, uma vez que se encontravam cercados e o exército, parecia coeso, imenso e bem armado. E estavam melhor posicionados. Não arriscariam. Fizeram sinal às tropas, deram meia volta e seguiram o seu caminho, sem ligarem à estupefacção dos aldeãos, que, agora, estavam ainda mais confusos, sem fazerem a mínima ideia do que se passara. As pobres criaturas só se conseguiram mexer, quando a última fila do inesperado exército desapareceu na curva do carreiro que os recolocaria no bom caminho. Foi então que se voltaram e depararam com o espectáculo que os maravilhou e compreenderam tudo. Os fiéis rochedos, com a sua água reflectindo os raios solares de forma intensa, davam a impressão de que estavam protegidos por um exército. Entreolharam-se surpreendidos. Fora aquele espectáculo que afugentara aquele enorme exército. Suspiraram de alívio e continuaram o seu trabalho amanho da terra. Quer de Inverno que de verão, aqueles rochedos, desde que o sol forte lhes batesse violentamente, o espectáculo manter-se-ia sempre, pelo que não se tinham de preocupar com possíveis ataques inimigos.


publicado por fatimanascimento às 03:54
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