Terça-feira, 11 de Novembro de 2008
Sempre achara estranho! Já tinha visto muitos com pouca água ou mesmo sem nenhuma, no período mais seco do ano, mas um que eu nunca conhecera com água…! Não se lhe conhecia utilidade. Talvez a tivesse tido em tempos… Uns tempos já muito idos! Quando a pequena capela seria um mosteiro que abrigava frades, não sei de que ordem, talvez de S Francisco Xavier, dando algum crédito aos painéis de azulejos que decoram as paredes daquele pequeno monumento, com um charme único. Descobri, com a ajuda da senhora que, na altura velava por ele, a entrada para um subterrâneo que começava na sacristia, escondida atrás de um armário e já selada, por uma questão de segurança, e outro caminho, atrás do altar, que descia em espiral, e cujo percurso já se encontra também interrompido, devido a uma derrocada. Pouco se sabe da sua história. Os monges parecem ter levado o segredo com eles. Não se sabe se ela teria feito parte de um complexo de edifícios religiosos mais alargado. Se assim foi, única construção que resistiu, foi a capela. O que é curioso, é que a poucos metros dela, estava um poço que nunca foi observado cheio. Talvez fizesse parte de um vasto complexo agrícola, mas, se assim fosse, quem o cavara saberia fazê-lo de forma a que ele não perdesse, pelo menos, a preciosa chuva que lá caía. Embora as suas paredes fossem de pedra bem talhada e sobrepostas, o fundo parecia ser de terra, que parecia absorver a água que lá se acumulava nos dias mais chuvosos. A área que circundava a pequena capela, estava coberta de oliveiras e algumas figueiras. Algumas das oliveiras eram tão velhas, que só sobreviviam graças às paredes do tronco, encontrando-se todo o seu interior devastado. Desconheço se, alguma vez, alguém se interessou por aquela parte esquecida, da zona alta de uma pequena vila, propondo escavações para tentar descobrir mais alguma informação sobre aquela capela. As tentativas foram sempre superficiais e estavam ligadas aos mais audaciosos. Ouviam-se breves histórias sobre este e aquele que tentaram percorrer os subterrâneos, para descobrir a saída dos longos e misteriosos subterrâneos. Uns diziam que a saída se encontrava no castelo, onde os monges, e quem sabe, mais pessoas, se refugiariam nos tempos conturbados das invasões. Pensa-se que o poço seria uma das entradas, ou parte do traçado desse subterrâneo (ou subterrâneos!). Por ali, entrariam os que trabalhavam as terras ou sairiam aqueles que procuravam fugir da capela. Mas estas são meras suposições. E agora é tarde demais. O velho poço teve muitas utilidades, já que se desconhecia a verdadeira, e serviu de lixeira, onde eram depositados os pinheiros natalícios, entre outro lixo. Mais tarde, com a venda dos terrenos, onde ele se encontrava, todas as árvores foram arrancadas, o que transformou os mesmos num imenso lago castanho claro, que ameaçava galgar o carreiro de terra batida, que dava acesso à entrada das vivendas, de onde já se descobriam algumas pedras brancas escavadas pelas chuvas fortes. A solução encontrada pelos funcionários da câmara, que também nunca haviam conhecido utilidade alguma para ele, e estimulados por alguns moradores, foi abrir um buraco na harmoniosa parede de pedra, para escoar o excesso de água. Mas esta era tanta que não dava para escoar toda, embora o buraco aberto projectasse a água, que nele entrava, com violência no fundo. A água desaparecia e só ela descobriu o mistério, se o havia, daquele poço. Hoje, ele está enterrado debaixo de uma manta grossa de alcatrão, não passando de uma velha memória de infância, onde eu e mais algumas vizinhas, nos perdíamos em buscas de tesouros perdidos. Se saber que o maior tesouro é a memória humana.


publicado por fatimanascimento às 09:36
Domingo, 25 de Maio de 2008
Era um edifício pequeno e acolhedor. À entrada, o largo portão azul, no cimo da íngreme ladeira, abria os braços às bocas esbaforidas e ao rosto vermelho do esforço da subida. O impiedoso sol estival esgrimia os seus raios na direcção dos audaciosos aventureiros que ousavam importuná-lo àquela hora da tarde. O espaçoso pátio empedrado, de estreitos canteiros rectangulares, evidenciava os seus pequenos arbustos frondosos e coloridos que ladeavam a passagem de acesso ao edifício. O interior, submerso na fresca obscuridade das cortinas corridas, desprendia um silêncio acolhedor só interrompido pelas tímidas vozes sussurrantes ou pelo ruído dos passos abafados, espelhados na cera polida dos tacos largos. O agradável cheiro a cera fresca inundava a sala disputando a sua supremacia ao das folhas amareladas e finas dos livros muito manuseados.
A senhora da recepção, debruçada sobre os papéis da secretária, levantou a cabeça à minha chegada. Os óculos de lentes pequenas, equilibrados na ponta do nariz, agravavam o ar austero, que o seu olhar seco projectava em mim. A boca de lábios finos, abriram-se para pronunciarem um breve “Sim?!”. Depositei os livros em cima da mesa, que me haviam feito companhia nos últimos quinze dias e que haviam percorrido todo o caminho aconchegados ao meu peito suado. Entrei na sala. Duas ou três cabeças espalhadas pela sala de leitura, de olhos cravados nos livros, nem deram pela minha chegada. Dirigi-me aos armários, de estantes irrepreensivelmente limpas, guiada pelas instruções prévias da senhora. Olhei os armários cujos vidros, protegidos por uma espécie de rede metalizada, guardavam fielmente o seu tesouro. A madeira das portas, ligeiramente inchada pelas humidades dos Invernos mais rigorosos, dificultava a tarefa da sua abertura. Os livros, de tamanhos e grossuras variados, perfilados nas estantes, jaziam adormecidos, totalmente alheios ao ar morno destilado da brisa que atravessava as cortinas fechadas, sacudindo-as mansamente. O ruído da porta a desprender-se do seu encaixe, fez levantar as cabeças, antes absortas, dos vários cantos da sala de leitura. A senhora da recepção acudiu solicitamente, alarmada com o ruído. Depois de uma breve inspecção, e vendo que nada fora danificado, ela explicou que aquela porta necessitava da intervenção urgente de um carpinteiro que demorava em vir. Muito vermelha por ser o centro inesperado das atenções da sala, e de coração ainda a bater apressadamente, apressei-me a acenar em sinal de concordância. Uma vez sozinha, frente àquela porta inoportuna, procurei rapidamente os livros que necessitava e a mesa do canto mais distante e discreto. Tarde demais. Um puxão na minha camisola de manga curta de algodão, fez-me parar. Ao lado, sentado a uma das mesas centrais, estava um amigo meu, um ano mais velho, filho de um colega do meu pai. Trocámos algumas palavras, olhando, de vez em quando, para a entrada e à volta, para nos certificarmos que não estávamos a incomodar os presentes. Ninguém pareceu dar pela nossa conversa, a não ser um rapaz que, de vez em quando, e parecendo ter dificuldades em se concentrar, nos olhava sem rancores visíveis. Segui o meu caminho, rumo ao recanto descoberto minutos anos, e mergulhei no refúgio imaginário de uma das minhas autoras favoritas. O tempo voou. Uns toques ligeiros no meu ombro, e um sorriso afável, avisaram-me que tinha chegado hora. Olhei à volta e reparei que todos se levantavam e arrumavam as cadeiras, junto das mesas imperceptivelmente. Levantei-me, acompanhada dos livros que queria requisitar e dirigi-me à recepção, sempre seguida do meu inesperado acompanhante. Acabados os trâmites necessários, saímos para a tarde morna daquele fim de dia de verão, falando e rindo abertamente.

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 09:50
Segunda-feira, 05 de Maio de 2008
(Ao meu pai, Francisco Dias…)

Estava de serviço numa das noites que se seguiram ao 25 de Abril. Torres Novas era uma pequena vila, com um quartel aninhado na extremidade da parte baixa da localidade, ocupando uma boa área dela. Todos nos lembramos daqueles dias de insegurança que se seguiram ao rebentamento da revolução. Todos nós tínhamos medo. Afastados do fulcro dos acontecimentos, ninguém sabia bem quem estava à frente do país e o que pretendia. Os dias eram de inquietação e as noites de medo. Ninguém se atrevia a sair à noite. O meu pai, agente da PSP, tinha de sair para fazer a sua patrulha. Naqueles tempos, os polícias eram poucos e faziam a patrulha a pé e sozinhos. Foi o que aconteceu naquela noite ainda fria de Abril. Ele estava sozinho na rua. Ele entrou à meia-noite. Como sempre acontecia, ele chegou mais cedo e, após a troca de algumas palavras com os colegas sobre os acontecimentos do dia, ele saiu calmamente para sua ronda. Desceu a estreita e curta rua, que saía da praça 5 de outubro, seguiu sempre em frente, respirando o ar ainda frio da noite. Passados momentos, ele ouviu tiros vindos do lado do quartel. Os colegas tinham razão, a agitação vinha daquele lado. Os tiros repetiram-se a uma velocidade atroz. O meu pai estremeceu. Que raio se passaria ali? A vila, sempre calma, não era dada a problemas. Só poderia ser alguém ligado ao quartel. Parou e pôs-se à escuta. O barulho parecia ter desaparecido. Talvez já tivesse passado. Continuou a caminhar, sempre atento a qualquer movimento ou ruído suspeitos. De repente, os tiros prolongaram-se rasgando a noite. Uma metralhadora, pensou. Parou, atento, o coração a bater descompassadamente. Precisava urgentemente de localizar os tiros. Os tiros pareciam rodeá-lo. Olhou para a sua pistola. Nunca se servira dela. Passou a mão pelo coldre, onde estava a arma enfiada. Lentamente, retirou-a, sempre à escuta. A rajada parecia vir do seu lado esquerdo. Pelos disparos, parecia ser uma só arma. Uma metralhadora., pensou, Quem andaria por ali acompanhado de uma metralhadora? Só poderia ser um militar. Onde teria arranjado a metralhadora? Com que ordem a teria trazido para fora do quartel? Todas estas questões assaltavam-lhe o espírito ansioso. Enfiou a arma de novo no coldre e continuou a andar, regulando-se pelo ruído que, de tempos a tempos, rasgava o ar. Não havia sinal de grande movimentação, pelo que deveria ser só um militar a celebrar a revolução. Continuou a sua ronda. Os tiros estavam agora mais perto. Estacou, novamente. "Malditos militares", pensou com raiva. Os tiros ecoavam pela baixa da vila. As janelas fechadas pareciam desertas. Caminhou corajosamente em frente, receoso do que poderia encontrar pela frente. Antes de chegar ao cemitério, cortou à sua esquerda, na ponte rústica que passava despercebida a grande parte das pessoas, direito ao Félix Carreira e continuou atraído pelo ruído. Que se passa?, pensava ele curioso e cauteloso. Continuou sempre em frente, contornou a Casa de Saúde até à ponte do Raro. Era do lado do quartel. Olhou à sua volta e nada viu. Que raio, pensou, As rajadas calaram-se. Quando se preparava para passar a ponte, uma voz autoritária fez-se ouvir. “Alto!”, e reconhecendo a farda da PSP, continuou “Dê-me a arma ou limpo-lhe o sebo!” O meu pai voltou-se lentamente, encarou o homem, e a metralhadora apontada ao seu peito. “Há algo de errado no homem”, pensou o meu pai. O outro de farda militar fez um gesto de impaciência com a metralhadora. “Bom”, pensou o meu pai, “Agora, ele limpa-me mesmo o sebo”. Retirou lentamente a arma do coldre, sem tirar os olhos do homem, baixou-se e atirou-a para longe dos seus pés. O outro, um pouco bêbado, pareceu agradar-lhe sentir-se obedecido. Parecia saborear o seu acto. Foi esse momento que, obedecendo ao seu instinto, ele desatou a correr, aproveitando a obscuridade da rua. As botas pesadas da tropa seguiram no seu encalço, arfando debaixo do peso da metralhadora e do álcool que consumira. O meu pai, aproveitando a vantagem, cortou numa das travessas em direcção ao posto da PSP. Bateu à porta que permaneceu fechada. Insistiu. O ruído seco das botas da tropa aproximava-se rapidamente. O meu pai contornou a relojoaria e subiu na direcção do castelo. Passou en frente à GNR e bateu à porta em busca de abrigo. Olhou a porta verde cerrada. Guiadas pelo ruído das pancadas, as botas orientaram-se na sua direcção. Desesperado, o meu pai desceu a colina do castelo em direcção à avenida. As botas seguiam-no, atentas ao mínimo ruído. Aproveitando a obscuridade o meu pai evitou a ponte e mergulhou na poluição do rio Almonda, nadando bruços num silêncio que só ele consegue. Chegado à margem, olhou para trás e viu a figura alta a olhar em seu redor, confusa com o seu súbito desaparecimento. Manteve-se agachado, até ver a farda afastar-se, sempre acompanhado da sua fiel arma, olhando sempre em redor, cautelosamente, à espera de um deslize do perseguido. “Um autêntico militar em situação de combate”, pensou o meu pai, avaliando-o. Após um certo tempo, o meu pai saiu do seu esconderijo e correu apressadamente em sentido contrário ao do militar, direito a casa.
Naquela noite, a minha mãe acordou sobressaltada com as rajadas de metralhadora. De pé, os pés descalços em cima do bidé, ela seguia atentamente os ruídos de arma de fogo, pensando, angustiada, no marido, na rua, enfrentando sozinho as balas que cortavam profundamente a noite.
05:00 horas da madrugada. Foi o cheiro que me despertou nessa noite. O meu pai despiu a roupa nauseabunda, tomou duche enquanto a minha mãe se dirigia apressadamente ao tanque com ela. O cheiro era insuportável e manteve-se dentro de casa ainda uns dias, para nosso desgosto.
06:00 horas. O meu pai vestiu-se novamente e preparou-se para sair. Sossegou a minha mãe dizendo que iria para o posto e que não poderia ficar em casa, sabendo que o colega estava sozinho do posto. Ele sabia o perigo que ele corria e era preciso avisá-lo. Nós não tínhamos telefone. Foi então que a campainha tocou. Entreolhámo-nos. Quem seria àquela hora? O meu pai foi abrir a porta. Entraram os colegas. “Graças a Deus! Estás aqui!”- foi a exclamação geral. O alerta fora dado pouco depois da perseguição ao meu pai. A GNR e o colega do meu pai que estava de plantão, telefonaram para o quartel, relatando o acontecimento, e pedindo-lhe ajuda. O colega do meu pai informou-os que o meu pai andava sozinho na rua, e que poderia apanhá-lo pela frente. Os militares entraram em acção, dispersaram-se numa busca ao homem, quando encontraram a pistola do meu pai no chão. O posto foi prontamente avisado do achado. A ordem é que se mantivessem quietos até os militares apanharem o colega. O que não levou muito tempo. Levaram-no para o quartel. Sabendo da captura do militar e ainda alarmado pelas pancadas na porta, o colega de plantão no posto da polícia chamou alguns colegas e deram uma volta pela vila em busca do meu pai. Não havia vestígios dele. Finalmente, ganharam coragem, meteram-se dentro do carro de um deles e vieram a casa procurá-lo.
10.00 horas da manhã. Os militares entregaram-lhe a arma, com um pedido de desculpas, explicando à PSP, e ao meu pai, o que sucedera. Os militares que conheciam o autor de tal desacato, disseram ao meu pai, que a sorte e o perigo dele estivera na bebedeira do militar que o havia perseguido. A sorte porque a bebida toldara-lhe o espírito e o perigo porque ele poderia, a qualquer momento, ter disparado a arma, matando-o. Era um bom militar, muito bem treinado, mas o meu pai conhecia melhor a localidade que ele. Os militares estavam chocados com o que sucedera, mas visivelmente mais chocados com o que poderia ter acontecido.


publicado por fatimanascimento às 02:53
mais sobre mim
Dezembro 2011
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

11
12
13
14
15
16
17

18
19
20
21
22
23
24

25
26
27
28
29
30
31


links
pesquisar neste blog
 
subscrever feeds
blogs SAPO