Quarta-feira, 13 de Maio de 2009
As vivendas do meu bairro tinham, quase todas, anexos do lado de trás que ocupavam a largura do terreno. Lembro-me particularmente de uma. Para além da espaçosa garagem, onde o pai trabalhava como mecânico, nas horas vagas, havia um corredor longo e espaçoso onde o senhor guardava as suas ferramentas, que dava para uma abertura, a meio do terreno, e, ao lado desta, a meio do corredor, uma outra arrecadação. A cobertura dos anexos, assente em barrotes de madeira que suportavam o peso das telhas, deixavam escapar insolentes fios da irreverente luz. Ao lado da garagem, havia um espaço, uma entrada independente, com um tanque de cimento a um canto. Nesse espaço, entre este e a parede da garagem, o pai dos meus amigos de infância havia prometido colocar uma grossa corda, dependurada do barrote fronteiro e uma tábua rectangular com duas reentrâncias laterais a meio. Na outra entrada, a meio da largura dos anexos, outra corda foi pendurada com uma tábua inserida lateralmente nas reentrâncias. Era ali que nos refugiávamos nos dias de chuva. Balançávamos ao ritmo dos gemidos da queixosa madeira, alucinada com a velocidade e o inesperado acréscimo de peso. Como o improvisado assento caía constantemente, a nova e ansiada solução chegou algum tempo depois – dois perfeitos orifícios semelhantes a dois imensos olhos, que perfuravam a madeira lateralmente e pelos quais passava a corda que terminava, debaixo da tábua, num volumoso nó. Os baloiços, que haviam terminado por constituir uma fraca atracção, ganharam um novo fôlego entusiástico que se traduziu numa caprichosa procura, quando se juntavam os pequenos vizinhos. Quando nos entendíamos, era uma maravilha desfrutar, à vez, daquele movimento pendular, onde baloiçávamos as nossas emoções, sempre à procura de novos desafios. O problema residia nessa nítida falta de entendimento – éramos muitos e pouco o tempo. Os aborrecimentos e as discussões levaram à extinção daquela amada diversão. Uma lição grande para gente pequena. Passávamos as tardes cinzentas e húmidas sentados, muito quietos, distraídos com brincadeiras que traziam paz às pesadas tardes cobertas de uma extensa, macia e volumosa coberta de cinzentas nuvens. Da estreita rua de terra batida, moldada pelos dedos grossos da chuva, desprendia-se o agradável cheiro a terra húmida, acalmada a poeira fina. O delicado perfume esvoaçava no ar acomodando-se às nossas atentas narinas. Os olhos vigiavam ansiosos a tarde chuvosa à procura de uma aberta que nos permitisse desfrutar do imenso espaço exterior, onde a pródiga natureza nos esperava inquieta, atenta aos finos ramos quebrados, vergastados pelos implacáveis grossos fios de água, das centenárias oliveiras que tombavam desamparados no chão, cobertos ainda de aflitas folhas desesperadas agarradas à fina estrutura, com medo de enfrentar o abismo aberto debaixo de si.
Nos dias em que o ameaçador e carrasco céu se cobria de negras nuvens frias, ameaçando transformá-los em precoces noites, obrigando as janelas as iluminarem-se com aquela luz amarela escura que roçava o tom alaranjado, e a grossa chuva açoitava as vidraças empurradas pelo imperial guarda furioso, cobrindo a terra de um aquoso e espesso véu translúcido, em tudo semelhante a uma violenta cascata celestial de água prisioneira, os dois baloiços embalavam os seus sonhos perturbados pelo som dos gritos agudos do invisível e autoritário agente implacável.


publicado por fatimanascimento às 11:33
Quinta-feira, 24 de Julho de 2008
Já havia data marcada. A expectativa pairava no ar à mistura com alguma ansiedade. Era um grande acontecimento, pois estaria presente o, então, presidente da república portuguesa, o almirante Américo Tomás.
Muito tempo antes começou o burburinho gerado pelo grande acontecimento. Pessoas reuniam-se ocasionalmente, na rua, para o comentarem com entusiasmo. As mais idosas esperavam ansiosamente o dia em que a sua capela passaria a ter uma missa, evitando as deslocações forçadas à central zona baixa da vila.
O dia acordou cedo. O sol espreguiçou os seus longos raios mornos, pronto a acompanhar a inauguração programada. A capela, indiferente à agitação criada à sua volta, dormitava ainda, cansada da agitação dos preparativos, toda ela enfeitada para a ocasião.
Por volta da hora marcada, algumas pessoas começaram a agrupar-se nas imediações da capela, esperando o convidado de honra que presidiria à cerimónia. As senhoras mais idosas mostravam a sua impaciência e alegria mal contidas, com a chegada do almirante, dir-se-ia um grupo de fãs à espera do seu ídolo. As janelas foram-se abrindo, pouco a pouco, retomando a rotina diária, só com uma diferença: a permanência dos donos nos seus postos de vigia. Alguns vizinhos aproximaram-se para presenciarem, de perto, o acontecimento histórico.
Eu era uma peça da estreita moldura de pessoas à espera daquela pessoa tão importante. Constava que não se demoraria muito tempo. Demorar-se-ia só o tempo suficiente, retomando a sua marcha rumo ao outro destino que o esperava.
A chegada do carro presidencial foi saudada com gritos aplausos. O senhor calvo e gordo, simpático, saiu, sorridente, do enorme carro preto, saudando a pequena multidão que o aplaudia. Após a sua recepção pelas autoridades locais, o corte da fita e uma visita rápida, pela formosa capela, a moldura estreitou-se à sua volta e o senhor viu-se rodeado pelas idosas viúvas que o abraçavam e lhe dirigiam palavras carinhosas. Eu observei aquele senhor idoso e simpático. Perto de mim, vi um vizinho acompanhado pela filha. Fiquei admirada, porque não estava à espera da presença deles. A dada altura, ele incitou a filha a cumprimentá-lo também. Como a miúda resistisse, ele insistia. Eu, ao ver aquela cena, decidi-me e avancei para o senhor, e preguei-lhe dois beijos nas bochechas salientes. O senhor pareceu-me surpreendido. De volta ao meu lugar, olhei para a minha colega, mostrando-lhe que o senhor não mordia. Os olhos do pai trespassavam-me de ódio. Eu compreendi, então, que aquele momento não me estava destinado mas à filha. A presença da televisão era a responsável.
O senhor, gordo e afável, despediu-se dos ininterruptos aplausos do pequeno grupo, avançando sempre na direcção do carro que o esperava, seguido da sua também pequena comitiva.
Passados alguns dias, comentando o acontecimento ao portão da casa dos vizinhos, foi comentada a minha audácia pelo pai da menina ao outro vizinho. Não sei o que mais me doeu se o comentário do que assistiu ou o do outro quando respondeu:
- Cumprimentou uma grande coisa, deixe lá…! – confortou-o o vizinho
- Também não apareceu na televisão! – retrucou o outro, rindo-se. – Estive atento às notícias e das vezes que eu vi, nada ficou registado nas imagens.
Em casa nunca se discutira política, nem nunca se falara dos problemas ligados a ela. Só pela voz dos meus vizinhos eu percebi, por alto, que o senhor gordo e afável não era muito querido.
Hoje, sempre que recordo aqueles momentos, não sei quem era pior, se os vizinhos se aquele senhor afável de quem não tinha queixa nenhuma.


publicado por fatimanascimento às 00:41
Domingo, 29 de Junho de 2008
As noites claras de Junho desciam serenamente sobre a terra cansada e dorida do sol escaldante, proporcionando-lhe as tréguas merecidas.
A música, saída dos altifalantes, lembrava-nos que a festa estava a começar. Daí a pouco, uns punhos fechados, batiam forte e apressadamente contra o vidro da porta da cozinha. Após o jantar, lá ia o nosso bando ao encontro daquele chamamento.
No corredor, que dava para os quintais do meu prédio, éramos presenteadas com aparecimento dos pirilampos esvoaçando na sua intrigante dança esverdeada, arrebatando-nos para um distante e iluminado mundo encantado, gerado à volta das nossas cabeças.
Divertíamo-nos a alcançá-los com as mãos, onde os fechávamos, por momentos, para contemplar aquelas pequenas maravilhas cintilando, aturdidas, nas palmas das nossas mãos. Era um momento mágico, intemporal e de fascínio colectivo. Observávamo-los como se quiséssemos desvendar o mistério da maravilhosa luz. Depois, já refeitos, os pirilampos levantavam voo das nossas palmas, de encontro à intrincada dança desenhada pelos companheiros, no ar morno da noite.
Despertávamos, então, para a música que nos chamava para o largo da capela, invadindo e contornando os adultos na nossa velocidade infantil. Sentíamos aquela festa como nossa. Não tinha segredos para nós. Sabíamos de cor a sucessão dos eventos, que preenchiam, com notável nobreza, aquelas noites e tardes excepcionais. A marcha, com os seus arcos habilmente decorados, a luz dos balões, dançando à suave brisa, as saias coloridas que adornavam as ancas, agitadas pela batida compassada da música, as vozes juvenis, soltando a letra dos santos populares, a coreografia perfeita que cruzava e descruzava corpos, em efeitos visuais perfeitos; o cortejo das fogaças, que esperávamos com impaciência e curiosidade, cada ano, e as próprias fogaças que admirávamos de perto, quando descansavam nas prateleiras do pavilhão, sempre ricamente recheadas com iguarias, acomodadas em tabuleiros rectangulares murados, lindamente decorados, com esguios arcos que se intersectavam no ar, presos aos quatro cantos dele; a procissão dos pãezinhos, na qual participei em criança, carregando um dos lindos cestos e, mais tarde, já uma jovem feita, suportando o peso do pesado andor, de um dos santos que guardam os três altares da maravilhosa capela de Sº António.
Nos espaços calmos da festa, enquanto se aguardavam os espectáculos, nós, os mais pequenos, invadíamos o palco, como guerreiros implacáveis, desenhando nele intricadas coreografias nas nossas correrias.
Por volta da meia-noite, como quase sempre nos esquecíamos das horas, lá aparecia uma mãe a chamar o seu rebento, a que se seguiam outras. A minha, como acompanhava a festa da janela da sala de estar, na conversa com as vizinhas, limitava-se a acenar o braço e, quando a minha teimosia fingia que não via, lá vinha ela pelo seu pé, torcendo a boca em sinal de contrariedade, enquanto me puxava pela mão, vencendo a resistência das minhas pernas.
À noite, as casas adormeciam, embaladas pela alegre música dos artistas convidados, que animavam os bailes até de madrugada.
Mas a festa começava muito tempo antes. Era à noite que os infatigáveis vizinhos, depois de um dia de trabalho, (alguns tiravam férias nessa altura), se reuniam para assegurarem os serviços indispensáveis àquela festa popular. Algumas semanas antes, já as vozes agudas dos martelos e dos berbequins desafiavam as calmas noites primaveris. À noitinha, grupos de jovens reuniam-se nos barracões, por baixo da casa do caseiro, para realizarem os preparativos da festa. Dos barracões, passava-se aos palcos, onde se ensaiava a marcha, insistentemente, com paragens a meio, até se conseguir a perfeição exigida. Todos estes passos eram vigiados pelos nossos extasiados olhos infantis. Este ano, levei os meus pequenos até lá, e vi, com agrado, que todas as pessoas se mantinham fiéis à festa, tanto os participantes como os organizadores. São pessoas como estas, que, pelo seu empenhamento e determinação, às vezes vencendo obstáculos duros e contornando outros, (e houve alguns na história desta festa) que mantêm as tradições vivas. Esta festa é um exemplo disso mesmo. Bem hajam, por isso!

Fátima Nascimento


publicado por fatimanascimento às 11:45
Terça-feira, 06 de Maio de 2008
Os meus filhos mais velhos chegam a casa e, com o pouco à vontade que os caracteriza, na matéria dos afectos, às vezes, lá vão desabafando que fulano ou fulana tal gostam deles. Acho piada ao embaraço que demonstram nestas situações, como se não soubessem como agir convenientemente. A nossa conversa, às vezes, parece ajudá-los. Eu, para ser franca, nunca dei muita importância a este tipo de situações, desdramatizando-as, e colocando-as à luz daquilo que são verdadeiramente – situações naturais da vida. E, como tal, devem ser encaradas não só pelos envolvidos como pelos que os rodeiam. Muitas vezes, a minha resposta à conversa deles era “Mais vale gostarem do que odiarem. Garanto-vos!” E é verdade. Se eu percorrer, de volta, os caminhos das minhas memórias, lembro-me do tabu que era uma situação destas e do modo como garotas mal intencionadas se aproveitavam destas situações naturais, para expor publicamente as outras gaiatas.
Foi no tempo em que os rapazes podiam fazer tudo que nada lhes ficava mal e as raparigas tinham de ser recatadas.
Quando saí da escola primária, nada sabia sobre afectos. O único que eu conhecia era o sentimento de amizade que nutria pelos meus companheiros, vizinhos de brincadeiras. Lembro-me, ainda na escola primária, durante o recreio, de os avistar, ao longe, do outro lado da estreita rua que separava, por sexo, as duas escolas, e acenar-lhes. Era estranha aquela situação. Brincávamos todos, na rua, no amplo espaço verde, por trás das nossas casas e, ali, aquela inexplicável separação forçada. Lembro-me das nossas batas apertadas atrás, todas de um algodão branco imaculado, só diferentes das dos rapazes nos botões que desciam, à frente, do ombro até uns centímetros acima dos joelhos. Como os horários eram semelhantes, muitas vezes, íamos todos, em grupo, para casa. E eram ainda uns quilómetros, sempre a subir, até à zona alta, onde vivíamos no mesmo bairro, adornado de pequenas vivendas, cuja rua estreita, de terra batida, terminava em duas curvas apertadas, virando em direcções opostas. Terminada a última curva, nós estávamos em território nosso. Era, ali, que se desenvolviam as nossas brincadeiras, muitas delas, em conjunto.
Já no ciclo, ainda mais longe de casa do que a primária, foi quando tudo começou. As minhas colegas andavam excitadas e as conversas giravam, muitas delas, em torno do mesmo tema – os rapazes. Eu não via nada de novo nesta matéria e começava a aborrecer-me com as confidências amorosas. Não me diziam nada. Mas era pegar ou largar. Eu tinha de arranjar um afecto, à pressa, para não ficar isolada. Como provavelmente em todos os afectos, há aqueles que são comuns a mais do que uma miúda. Logo, por portas e travessas, as conversas chegavam aos ouvidos dos visados. Vi-me envolvida em intrigas, em desprezos, em ódios… adolescentes. Eu, que não ligava a nada daquilo e só tinha um afecto para não ficar excluída do grupo, via-me envolvida em situações novas e estranhas. Abrira-se, ali, um mundo totalmente novo, que nada tinha a ver com aquele mundo seguro e descontraído, que, até então, conhecera. Este novo mundo, regia-se por leis diferentes, totalmente desconhecidas por mim. Nem irmãs ou irmãos mais velhos eu tinha que pudessem orientar-me, como as minhas vizinhas de casa e de escola tinham. Andava um pouco ao acaso. Mas, como o interesse nesse assunto era relativo, nunca me preocupei. Até começar a ter problemas reais que pareciam perseguir-me. Cheguei a odiar a minha primeira escolha, por toda a situação criada à volta do meu suposto afecto por ele. Recordo-me vagamente do rapazinho gordo, de cara redonda e simpática que se transformara com a vaidade de se saber alvo de um especial afecto por mim. Já não me lembro se lhe escrevi algum daqueles bilhetinhos, tão vulgares na época, escritos em folhas arrancadas dos dossiers, e dobradas não sei quantas vezes, como se quisesse guardar bem o segredo que, depois da entrega, seria divulgada aos sete ventos. Odiei a situação toda, odiei-o… Após esta má experiência, pensei em nunca mais me meter noutra situação semelhante. Mas enganava-me. Um amigo e vizinho ajudou-me a ultrapassar essa situação, que ele próprio reconhecia ser má. O que ele não compreendia, era o meu ódio pelo primeiro alvo dos meus afectos, que, depois da confusão do primeiro ano, admitia que desenvolvera um afecto verdadeiro por mim. Não quis saber. Muito negativamente marcada por todo aquele reboliço, arredei-me um pouco daquela confusão. Como eu e o meu amigo de infância andávamos, muitas vezes, juntos, passei os meus sentimentos para ele. O mesmo inferno se desenhou à minha volta, até me terem avisado que o meu nome estava escrito na madeira velha de um portão mais ou menos nestes termos. "A Fátima do polícia gosta do …" Pois! Já não se pode gostar de alguém sem que se metam na nossa vida! A vida é minha e, se gosto de alguém, o assunto não diz respeito a mais ninguém. Comecei a defender esse direito. Daí a pouco, os meus pais, alertados para a situação, juntaram-se à minha causa, confusos com tanto reboliço em volta de mim. Sei que ganhámos. As pessoas pareceram despertar do seu estado de hibernação moral, para reconhecerem, naquela frase, e em quem a escreveu, não só má vontade como também maldade. O caso mexeu com as pessoas, de tal forma, que se descobriu a autora e o motivo que a levara a escrever aquilo. Não sei se foi ela que apagou a frase, ou se foi o vizinho a quem pertencia o portão alto de estrutura frágil. Foram emocionalmente esgotantes as primeiras andanças na vida afectiva pelo sexo oposto. Ainda bem que os tempos facilitaram a vida, pelo menos, às jovens…


publicado por fatimanascimento às 03:17
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